Escravos e Nordestinos na Guerra do Paraguai

Escravos e Nordestinos na Guerra do Paraguai

Os episódios relativos à Guerra do Paraguai continuam a merecer uma maior atenção dos historiadores.  O tema se vincula, por exemplo, a outros aspectos da vida brasileira como o surgimento das favelas.  Ora, o nome foi dado ao morro do português Antônio Favela, no Rio de Janeiro, quando do retorno dos soldados da Guerra do Paraguai. A vasta maioria deles era composta de negros, muitos ainda escravos, que tinham sido permutados pelas famílias brancas em lugar de seus filhos, que tinham sido apanhados para o recrutamento da guerra. O governo prometia a esses pretos a liberdade e um pedaço de terra. Mas quando terminou o conflito, o Brasil estava tão quebrado financeiramente,  que o custo de manda-los de volta para o Nordeste, notadamente a Bahia e estados longínquos era tal, que o governo adquiriu, noutras palavras, confiscou o morro do português Antônio Favela, e os colocou lá.

Uma questão sempre suscitada quando se fala da Guerra do Paraguai é a participação dos escravos e de populações menos favorecidas como os nordestinos..  Aliás, o tema da Guerra do Paraguai ainda não apresenta uma conclusão satisfatória, acreditando-se que o perdurar do conflito deveu-se a insistência de D. Pedro II em não encerrar o confronto e as próprias medidas estratégicas e insanas tomadas pelo próprio Solano López, dentro do Paraguai, exaurindo a sua terra e a sua gente. Grande parte, e para alguns estudiosos, a maioria dos soldados brasileiros  naquela guerra eram de origem africana. Isto sempre me era mencionado por alguns dos meus colegas historiadores paraguaios, em Washington.  Quase em uníssono afirmavam que no Paraguai, nos quadros retratando cenas sobre aquela guerra, os soldados brasileiros sempre aparecem como negros, e alguns deles me perguntavam a razão.

Naquela época eu ainda não tinha lido  sobre a ligação existente entre o recrutamento para a luta contra o Paraguai, a escravidão e o morro do Antônio Favela, e não tinha, portanto uma explicação cabível para lhes dar. Tampouco levantei a questão do recrutamento nordestino.  Depois, lendo a correspondência dos missionários presbiterianos, que começavam a chegar ao Brasil – depois da guerra civil nos EUA (1860-1865) –  li que as mães brasileiras, aterrorizadas com a ideia de os filhos partirem para a guerra, mandavam-nos para as “montanhas de MG e São Paulo, ou para lugares longínquos”, onde o exército não os poderia encontrar. Na época não havia convocação, assim os soldados saíam pelas ruas, apanhando os jovens, e obrigando-os a se alistarem, de acordo com a correspondência que analisei desses missionários americanos.

 Especificamente com relação ao tipo de contingente para a Guerra da Paraguai, ou seja, a questão do recrutamento, não só os escravos integraram as forças brasileiras, mas os nordestinos, principalmente os cearenses. Segundo a historiadora cearense Luciara de Aragão (1) já desde as lutas da Cisplatina “para cúmulo dos males que assolaram a província, a peste das bexigas surge como aliada das secas e do recrutamento no processo de despovoamento do Ceará.” Ela se refere aos anos de seca de 1824 -1825 e ao tratamento dado ao flagelo no segundo império, numa análise do episódio do recrutamento dentro de um quadro administrativo confuso e conturbado onde a seca foi só mais um elemento a gerar dificuldades”.(1) A forma brutal como se dava o recrutamento é descrita como um aspecto da arbitrariedade do governo arrancando das suas famílias”os homens do Ceará, “em processo de extinção.”Ainda embarcavam,no caso, sob o  comandante de armas da província Conrado Jacob, sendo presidente da província Antonio Sales Nunes Beford, em condições insatisfatórias e com a proibição de os vacinar em terra. Nenhuma vacina se efetuou consequentemente. Só mais tarde deu-se a devida atenção ao episódio do recrutamento na província. Na Câmara “A queixa do povo do Ceará se fez ouvir apesar da falta de garantias e da universalidade apenas teórica da Constituição” (2).

Ainda no Ceará quanto a Guerra do Paraguai conta-se do alistamento voluntário dos integrantes das classes mais altas para compor a alta oficialidade, dentro de uma perspectiva, não assegurada, de não lutar no front. A classe média com os denominados sorteios premiados podia optar pelo suborno do encarregado do serviço militar ou apelar para um padrinho poderoso. Quanto  aos  pobres eram recrutados a força –  repetindo-se o  hábito já sacramentado   nas lutas cisplatinas-  dando-se em razão disso uma fuga em massa  para as serras  ou adentrando-se mais fundo nos sertões.Entretanto, a ideia do voluntariado patriota existia ente alguns jovens. Um exemplo disso foi a atuação da jovem cearense Jovita Feitosa e na Bahia, a de Maria Quitéria. (3) Com certeza esse procedimento padrão existia nas várias províncias como Pernambuco, Rio Grande do Norte e alimentou todo um ciclo de favores e benefícios fortalecendo as relações de compadrio ainda hoje difíceis de se extinguirem.

Uma história engraçada, sobre os “voluntários da pátria” – que saíram marchando pelas ruas do Rio de Janeiro, aplaudidos pela multidão, especialmente moças – quando chegavam ao fim da marcha, encontraram pelotões de soldados para alista-los. Então, saíam correndo para se esconderem. Uma coisa é ser “patriota de araque”, outra é enfrentar a força bruta e o tiroteio. Acredita-se que foi a partir daí que começou o assunto da permuta de jovens brancos, por escravos africanos. Este procedimento era muito caro, pois o preço dos escravos tinha subido tremendamente, depois que a esquadra inglesa barrara o tráfico de navios vindos da África trazendo os escravos entregues pelos próprios africanos e comprados para as lavouras no Brasil. Um escravo chegava, então a valer um conto de reis, o que era muito dinheiro na época mesmo porque, às vezes, uma família chegava a permutar até 10 (dez) escravos, pela liberação de um só filho. Entretanto, no caso nordestino, o imperador Pedro II manteve-se irredutível no desejo de conceder verbas ao Ceará assumindo a posição de não permitir que morram de fome os habitantes de uma província. No entanto, apesar das alternativas e da boa vontade imperial num momento de escassez em que o Brasil recém findara a Guerra do Paraguai, terminou-se por implantar a política de retirada dos cearenses pelo porto de Aracati e pelo porto de fortaleza para região Norte do país. Observe-se que foram retirados também os escravos negros porque representavam bocas para alimentar. Sem dúvida um fator contributivo para que o estado se tornasse a “terra da luz”. (4)

Notas:

(1)     Luciara Silveira de Aragão e Frota, Documentação Oral e a Temática das Secas- Brasília: Senado Federal, 1970.

(2)     Op. cit. A autora discute as providências tomadas no Parlamento onde apenas dois dos oito integrantes da bancada do Ceará se manifestaram sobre o assunto, pp.135-141.

(3)      Guerra do Paraguai: o general Antonio Tiburcio, Ciclo dos Amigos da História, Temas brasileiros UnB. Tema discutido pelos professores doutores Corcino Medeiros dos Santos, Luciara de Aragão, Francisco Pinto Cabral, João Cabral e David Gueiros Vieira.

(4) As avultadas despesas com as secas incluem as acusações de incúria administrativa e os ecos dos roubos e da corrupção relativa à famosa seca de 1877. A corrupção está longe de ser um fenômeno novo.

David Gueiros Vieira

● PHD em História da América Latina, Mestre em história dos Estados Unidos da América, conferencista e um dos maiores especialistas brasileiros em História da Questão Religiosa do Brasil.

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