O Anticomunismo na Igreja da Zona Sul

O Anticomunismo na Igreja da Zona Sul

A ação política da hierarquia católica na diocese do Crato, na Zona Sul do Ceará, começou tarde.

Três ocorrências podem ser levantadas para justificar esse atraso:

1ª – A chamada Questão Religiosa de Juazeiro do Norte, iniciada em 1889 e somente encerrada com o falecimento do seu protagonista, padre Cícero Romão Batista, em 1934.

2ª – A destruição da experiência de vida comunitária, movida pela crença religiosa, posta em prática pelo beato José Lourenço Góes da Silva, no sítio Caldeirão, por tropas da Polícia Militar do Ceará e por uma esquadrilha do Governo Federal, cedida pelo Ministério da Guerra para bombardear a Serra do Araripe.

3ª – Os vexames vividos por alguns sacerdotes de projeção, na região, como o padre Antônio de Araújo, durante o Estado Novo (1937), por causa do seu Integralismo exaltado, gerando, em conseqüência, a privação da sua liberdade.

Entretanto, a ausência da Junta Diocesana da Ação Católica, somente instalada a 19 de março de 1939, sete anos após a sua implantação em Fortaleza  em Sobral, não impediu o combate, aos inimigos da Igreja, notadamente ao Comunismo.

A Ação Católica foi entregue ao professor do Seminário São José, José Bezerra de Brito, um leigo profundamente identificado com a ideologia católica.

Analisemos a segunda ocorrência, de maior repercussão no contexto do nosso estudo.

O  Comunismo  primitivo  do  Caldeirão

José Lourenço Gomes da Silva, o beato José Lourenço, é presença notada em Juazeiro do Norte, em 19, juntamente com os seus pais e três irmãs, quando os “milagres”envolvendo o padre Cícero Romão Batista  a beata Maia de Araújo atingem o clímax

Levas de romeiros, de todos os Estados do Nordeste, se deslocavam para a Meca do Cariri, atraídos pelos efeitos de uma religião popular, católica, idealizada para transformar a cidade “numa nova Jerusalém”, onde não faltavam o cenário de uma serra, a do Catolé, para simbolizar o novo “horto do calvário” e um rio, o salgadinho, originado nas encostas da Serra do Catolé, “o Rio Jordão”.

Moreno, esguio, pacifista por índole, iniciado na “Ordem dos Penitentes”, como beato, José Lourenço, na passagem do século, tinha arrendado  sítio Baixa da Anta, no município do Crato, próximo a Juazeiro do Norte, de propriedade de João de rito, e exatamente à parte onde as terras eram áridas, improdutivas, inóspitas.

Com muito trabalho e oração, disciplina e fé, José Lourenço começou a cultiva a terra, com a ajuda de grupos de lavradores sem terras, fanatizados pelas fantásticas histórias contadas sobre Juazeiro e seus “milagres”, os quais consistiam na “transformação”, em algumas vezes, da hóstia sagrada em sangue por ocasião em que a comunhão era ministrada pelo padre Cícero à beata Maria de Araújo.

Numa década, o que era inóspito se transformou “num belo pomar, frutejando, em pleno desenvolvimento, plantados em ordem alguns milhares de laranjeiras, mangueiras, jaqueiras, limeiras, abacateiros, mamoeiros, bananeiros e cafeeiros, ao lado de uma bem cuidada cultura de algodão, cereais e outras diferentes qualidades de plantas e hortaliças”.

1- FIGUEIREDO,José Alves. O Beato José Lourenço e sua ação no Cariri.In BRAGA,Renato. Dicionário Geográfico  Histórico do Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 196, p.184

II

Até 1914, o beato José Lourenço trabalhava a terra com a ajuda de um número expressivo de romeiros, adventícios de outros Estados do Nordeste, e já agora, de lavradores também do Vale do Cariri, sem terras, explorados pelos proprietários de engenhos de rapadura e de casas de farinha da região.

Pela sua capacidade de trabalho, brandura, religiosidade e total adesão ao patriarca de Juazeiro do Norte, de quem se tornaram pessoa de absoluta confiança, a ponto de oferecer trabalho e moradia a dezenas de perseguidos, foragidos, injustiçados, criminosos e desertores do regime de exploração do trabalho semi-escravizado no campo, José Lourenço viu seu oásis expandir-se a ponto de gerar inveja e preocupação.

Qual a razão do milagre? A fé,  disciplina, o trabalho e a oração, sem contar gestos de grandeza e caridade para com os desvalidos, os órfãos, os perseguidos. Usando a técnica o mutirão e um sistema de redistribuição da produção bem próximo do Comunismo primitivo, semi-analfabeto, voltado apenas para a história da vida dos santos, padre Cícero à frente, conduzia a sua irmandade no rumo de uma  a uma “Cidade de Deus”, composta de beatos, fanáticos, penitentes, ou seja, o caldo da cultura religiosa popular que o catolicismo antigo alimentou.

Um presente recebido pelo Padre Cícero Romão Batista e transferido para o Sítio Baixa da Anta – um touro da raça zebu – resultou em cuidados excessivos, por parte da comunidade de agricultores fanatizados, extrapolados para cenas de totemismo.

Defensor de José Lourenço, de quem se tornou amigo e conselheiro nos momentos de dificuldades por que passava o beato, José Alves de Figueiredo, um farmacêutico nascido o Crato, mas estabelecido nessa época, em Santana do Cariri, área próxima ao  Sítio Baixa da Anta, resume a origem  do culto ao animal.

Figueiredo identificam José Lourenço um espírito metódico e afetivo, capaz de tratar os animais de estimação (cavalo, ato, cão, pássaros) com muito zelo, quanto mais animal que lhe confiara a guarda o padre Cícero, ganhando, por isso , o boi “mansinho”, estábulo especial e tratadores dedicado. Daí para o culto ao animal foi um salto:

“Fanáticos mais exagerados, supondo com isso lisonjearem Padre Cícero,enfeitavam

os chifres do “mansinho” com grinaldas de flores, havendo entre essa gente  bronca

quem  lhe  fizesse  oblatos  e   bebesse-lhe  a urina como remédio eficaz para diversos

males.”2

Esse exemplo de totemismo exagerado tornou-se público em 1922, exatamente  quando Juazeiro do Norte era centro, mais um vez,  disputas políticas por parte de grupos litigantes.A história do culto ao boi começou a refletir negativamente em Juazeiro, no padre Cícero e no condutor da política local, o deputado federal Floro Bartolomeu da Costa.

Floro Bartolomeu havia chegado aa Juazeiro em 1908, em companhia de um nobre decaído francês, o conde Adolfo Van Den Bule, atraídos pelas informações sobre reservas auríferas na região. Graduado em Medicina, tendo exercido a profissão em alguns municípios do seu Estado  natal, a  Bahia, e em outras áreas do Nordeste, Floro era um aventureiro em busca de riqueza.

Nas suas andanças, como médico-itinerante pelos sertões do Nordeste, descobriu o conde, outro aventureiro, engenheiro de minas em busca de filões  auríferos para também  explorar. Os dois fincaram domicílio na região e passaram a viver uma aventura na qual Floro se tornou líder político, “eminência parda” do padre Cícero, deputado estadual, deputado federal e, mais que isso, um justiceiro inclemente contra ladrões, desordeiros, criminosos desocupados e conturbadores da ordem pública, desembarcados em Juazeiro. O conde não teve a mesma sorte. Seus projetos involuíram.

Para acabar de vez com o culto ao boi, Floro Bartolomeu mandou prender José Lourenço e matar o boi em frente à delegacia de polícia, em plena via pública, distribuindo carne – que os seguidores do boi consideram “santa” com populares e com os presos da delegacia, a começar por José Lourenço. Por várias vezes, tentou humilhar o beato, insistindo na idéia de que ele comesse a carne do “boi santo”, não conseguindo esse tento.

III

Depois de dezessete dias preso, o padre Cícero foi pessoalmente à delegacia libertá-lo.

A repercussão desse fato, o aumento do contingente populacional concentrado na Baixa da Anta, a seis quilômetros de Juazeiro,sítio localizado nos escarpados terrenos da Serrado Catolé, fizeram o seu proprietário, João de Brito, vender a propriedade inteira, incluindo a área transformada pelo beato num pomar. O novo proprietário exigiu  desocupação imediata do terreno.

Em 1926, moro Flor Bartolomeu, padre Cícero cedeu a José Lourenço o sítio Caldeirão, de sua propriedade, com 270 hectares, a sessenta  quilômetros   do Crato  distante também oitenta  quilômetros de  Juazeiro do Norte. Situado  entre as Serras  do Araripe  Verde, com terras  inóspitas também, mais se prestando para o criatório, o Caldeirão tinha uma vantagem: uma fonte e água permanente. Conta  uma lenda que nele s esconderam dos jesuítas, fugindo às perseguições do marquês de Pombal, em  1759, quando da expulsão dos soldados  da companhia de Santo Inácio  de Loyola, de  Portugal e suas colônias. Os jesuítas viveram os seus últimos dias  no Caldeirão.

José Lourenço, com a adesão da irmandade criada, repetiu no novo sítio o exemplo de prosperidade pelo trabalho conseguido na Baixa da Ana.

Otacílio Anselmo e Silva, autor e alertada obra de contestação dos acontecimentos  miraculosos de Juazeiro o Norte, foi quem melhor conceituou a nova  comunidade do beato:

“A  população de Caldeirão constituía uma espécie de sociedade de trabalhadores  rudes,

fanáticos do padre Cícero, guiados por José Lourenço. Todos trabalhavam, inclusive     o

beato. O produto da lavoura era depositado em armazéns e distribuído de acordo com  as

necessidades  de  cada um. Havia  em  Caldeirão  cerca  de   5.000 almas.  Jamais  houve

crime   no  povoado. (…)  O  beato  tinha  ascendência  moral absoluta sobre o povo. Não

havia armas entre os fanáticos ,nem mesmo  faca  de ponta. (…) Havia  novenários     com

cânticos, benditos e orações.”3

Visitantes foram observar de perto  a organização rural  do Caldeirão. No retorno, testemunharam:

“Centenas e centena  de homens se reuniam ali, fascinados pela  compensação econômica

da  participação  nos  lucros.  A  povoação  possuía  sistema  d’água próprio – barragens,

cisternas,  poço,   tudo,  aliás  feito  pelos  rústicos  com  o intuito de pouparem quaisquer

reserva  de líquido.O solo tratado e estimulado por adubos orgânicos rebentou em bela

produção que compreendia horticultura,  pomicultura,  floricultura , rebanhos, pocilgas,

aviários – todas essas coisas compondo um dos melhores quadros de organização rural

em  terra  abandonada  por  sáfara e  repudiada   para agricultura.(…) Os machados, as

enxadas,  as  foices,  os   ancinhos,  martelos,  instrumentos  elementares já se vê – eram

fabricados na granja. E  o pano que  aquela  gente   vestia era obtido nos teares manuais

também fabricados em Caldeirão, onde se tingia  preparava o vestuário.”4

Depois do fracassado Governo Popular e Revolucionário do Rio Grande do Norte, e dos enfrentamentos em corporações militares de Natal, Recife e Rio de Janeiro, quando da Insurreição  Comunista de 1935, instalou-se no pai o que os integralistas vinham reclamando desde 1932,à sombra da hierarquia católica: a indústria do anticomunismo.

3 – MONTENEGRO, Abelardo F. Fanáticos e Cangaceiros. Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno,

1973 p. 144.

4 – Idem, ibidem .145

IV

A repetição do cenário de prosperidade no Caldeirão, resultante da  oração e do trabalho, nas condições operadas na Baixa da Anta, fez migrar para aquele sítio expressivo contingente de trabalhadores rurais dos engenhos de rapadura, das  casas de farinha e  das culturas de algodão e de  subsistência do Vale  do Cariri, afetando os proprietários rurais.

Morto o padre Cícero,  em 1936 com noventa e dois anos de idade, parte do contingente de romeiros que continuou indo a Juazeiro do Norte, atraídos pela Nova Jerusalém, prolongava a peregrinação, para o Caldeirão, em busca de  conselhos, pois o beato é uma extensão de  Juazeiro.

Impressionados com tanta movimentação e pelo fato de que no Caldeirão “as relações de produção e de consumo tendiam para o comunismo”, ruralistas e religiosos integralistas do Crato, município no qual está encravado o sítio, alarmaram as autoridades estaduais sobre os seus riscos. “Personalidade marcante pelo número de adeptos que o seguiam em todas as decisões, despertava”, José Lourenço, “entre a população regional, muito respeito ou muita inveja”.5

O Secretário da Segurança do Estado Manuel Cordeiro Neto (na época, major  do Exército), e o  delegado de Ordem Política e Social, José Góes de Campos  Barros (um tenente, seu companheiro de corporação militar), arquitetaram um plano para desmobilizar o Caldeirão, nos mesmos moldes do que foi posto em prática em Canudos, e devolver as terras e os bens aos herdeiros em testamento  da herança do padre Cícero Romão Batista: a congregação dos padres Salesianos de São João Bosco.

A execução do plano deslocou para o Caldeirão  uma companhia de  fuzileiros e uma secção  de metralhadoras leves, mobilizando 150 militares. Quando estes penetram na comunidade, há muito José Lourenço  já sabia da presença deles  no carrascal da parte sertaneja da Cordilheira do Araripe.

Coube ao Secretário da Segurança, Manuel Cordeiro Neto, reunida a comunidade em torno do beato, em profundo silêncio e em tom d respeito, anunciar a decisão do Governo do Estado:

“Era necessário  que cada   um voltasse ao seu lugar de origem, levando o que pertencia,

porque o Estado não podia permitir aquele agrupamento perigoso.”6

As famílias tiveram um prazo de cinco dias para desocupar o local. Os solteiros, três dias.Um recenseamento procedido, então, pelos militares , levantou a origem da sua população: 75% adventícios  do Ro Grande do Norte; 20% de Pernambuco, Alagoas , Paraíba, Maranhão e Piauí; e 5% de cearenses. As passagens oferecidas pelo Chefe de Polícia, para o retorno  às suas origens, foram rejeitadas. Quanto à mudança, “…ninguém tinha bens  conduzir. Tudo que ali estava,  diziam, era de todos,mas não tinha dono…”7

Desmobilizando pacificamente o Caldeirão, o beato transferiu-se então para a Serra do Araripe, distante vinte e cinco quilômetros  do Crato, ocupando uma faixa de dois quilômetros entre Mata dos Cavalos e Curral do Meio. Por intermédio do advogado Antonio Alencar Araripe, uma ação de indenização foi intentada, mas arquivada posteriormente.

5 – BARROS, Luitgad Oliveira Cavalcanti. O Movimento Religioso de Juazeiro do Norte. Padre

Cícero  e  o  Fenômeno  do  Caldeirão . In:  SOUZA,  Simone  de (Coord.) História do Ceará.

Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha/Multigraf Editora, 1994, p.283.

6 – MONTENEGRO, Abelardo F. Op cit, p.88

7 – Idem,ibidem.

V

Um destacamento militar permaneceu na área desmobilizada para impedir a reorganização  dos sertanejos. Na Mata dos Cavalos o beato passou a ser protegido, agora mais do que nunca, por um serviço de espionagem, com olheiros espalhados em vários pontos estratégicos da região.

Em 1937, de volta do Rio Grande do Norte na companhia de cinqüenta homens, Severino Tavares – um dos seus auxiliares  imediatos no Caldeirão – inconformado com o  desmantelamento  do sítio, propôs a José Lourenço e ao secretário do beato, Sebastião Marinho, a retomada do sítio e a ocupação do Crato, para a obtenção de víveres, armas  e munições.

Lourenço e Marinho desaprovaram a iniciativa, condenaram-na e se negaram a praticar a aventura. Dos cinqüenta homens trazidos como reforço, vinte e seis ficaram ao lado de Severino Tavares e vinte e quatro apoiaram a decisão de José Lourenço.

Ameaçado de morte, por Severino, diante da recusa, Sebastião Marinho foi à cidade pedir proteção policial. Informado sobre o pano de Severino Tavares, o Secretário Cordeiro Neto acionou o capitão da Polícia Militar    do Ceará, José Bezerra, acantonado em  Juazeiro do Norte.

O militar conhecia a região. Disfarçado de industrial, ele havia penetrado muito antes no Caldeirão e convivido com a irmandade, fazendo  levantamentos estratégicos pra a ação militar conduzida  por Cordeiro Neto e por Góes de Campos Barros. Foi infiltrado no Caldeirão como agente do serviço reservado da Polícia.

Guiado por Sebastião Marinho e advertido por este sobre o poder de reação dos dissidentes de  Severino Tavares, o capitão  José Bezerra subestimou o adversário. Na companhia de dezoito militares , José Bezerra foi atacado, de surpresa,  na   localidade de Currais Velhos, sendo assassinado juntamente com um filho, um genro e dois outros militares. Houve baixa também do lado dos revoltosos. Tudo isso em quinze minutos de luta corpo a corpo.

O interventor Francisco de Menezes Pimentel solicitou ajuda ao Governo Federal para combater os beatos, fanáticos e penitentes, sublevados no Cariri. O ministro da Guerra, general  Eurico Gaspar Dutra deslocou uma esquadrilha  do Destacamento de Aviação, comandada pelo capitão José Sampaio Macedo, filho do Crato, afilhado do padre Cícero e proprietário rural na região.

O 23º Batalhão de Caçadores, sediado em Fortaleza, foi colocado igualmente à disposição  do Governo  o Estado. A ação militar foi fulminante Atacados por terra  pelo ar, milhares de velhos, adultos e crianças, homens, mulheres, pacifistas ou revoltosos, foram chacinados.  “As tropas desfecham ataque arrasador, (…) matando, espalhando e prendendo  gente no afã de capturar José Lourenço que se evadira. Os prisioneiros resistem à tortura e ninguém delata o paradeiro do beato”.8

Vinte famílias sobreviveram à chacina do Caldeirão, em 1937, reuniram-se depois  em torno do beato, na fazenda União,no município de  Exu, Pernambuco, limítrofe da divisa o Ceará. José Lourenço morreu ao 74 anos, seno sepultado em  Juazeiro do Norte em 1946.

Em A Ordem dos Penitentes, uma das  poucas  fontes  sobre essa Canudos em proporções menores, José Góes  de Campos  Barros tenta justificar a ação  das autoridades de segurança, na região alarmadas pelas   constantes informações do deputado Raimundo de Norões  Milfont, advogado dos proprietários de terras, sobre o perigo comunista  do arraial, seqüenciado pelos monsenhores Assis   Feitosa e  Joviniano Barreto. Argumentava Góes:

“O  Governo  resolveu  pôr    fim  àquele  núcleo de fanáticos, pela razão muito forte que,

mais  cedo  ou mais  tarde, poderia  ser  explorado por  qualquer ambicioso, inteligente a

audaz, criando-lhe imprevisíveis  embaraços…”9

8 – BARROS, Lutgarde Oliveira Cavalcanti. Op.cit, p.286.

9 – BARROS, José Góes de Campos. A Ordem dos Penitentes. Fortaleza : Imprensa Oficial, 1937. In: BRAGA, Renato. Dicionário Geográfico e Historio do Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará , 1967, p.192.

VI

Sobre o modus vivendi da irmandade destruída Góes de Campos Barros faz minucioso relato:

“Sob a influência direta do beato havia cerca de duas mil pessoas de ambos os sexos e de

todas as idades. Reinava ali uma disciplina absoluta e ma ordem rígida. A ascendência

de Lourenço sobre sua gente não conhecia limites; um gesto seu nunca  fora  discutido

por ninguém; a sua vontade era um  dogma e suas decisões tinham força de lei…”10

Militar por formação, vivenciando o ambiente anticomunista pós-35, Góes de Campos Barros enxergava a influência de Karl  Marx até nos acidentados  carrascais da Zona Sul do Estado:

“O beato,sem saber, era marxista-marxista prático.Para os seus celeiros convergiam

todos os produtos da comuna; com o se ferro e o seu sinal, eram marcadas todas as reses

da fazenda, todo os porcos, todos os cavalos. Mas ,explicava modesto e desprendido aqui

nada  me    pertence, é  patrimônio de todos os  que vivem nesta irmandade e recorrem à

nossa proteção.” 11

Na conclusão da obra, ode há mais esforço para  denegrir a imagem do beato, do que razões plausíveis para destruir o arraial, Góes reconhece:

“A terra é sáfara e quase estéril.(…) Somente a fé inabalável daqueles homens rudes, de

rostos  severos  e mãos   calosas  como  carapaças  de  tartarugas, seria capaz de fazê-la

produzir. E ela produz.” 12

A destruição do Caldeirão faz parte da onda repressora  anticomunista pós-35, quando crimes abomináveis foram cometidos em nome   da ordem e da segurança  do Estado. Foi também uma resposta do Estado à inquietação da hierarquia católica do Cariri, diante da possibilidade de surgimento de um novo “Juazeiro”.

A exemplo do que aconteceu em Canudos, a Bahia, com relação à escassez de mão-de-obra, os proprietários dos engenhos, das casas  de farinha e dos sítios do Vale do Cariri estavam perdendo a colaboração do braço farto e barato para o beato. A repressão destruiu uma experiência de vida  comunitária  construída na fé e na oração, cujos resultados poderiam servir  de modelo para outras iniciativas  no campo.

A  MASSA  CATÓLICA  CONTRA  OS  COMUNISTAS

Religiosos e fiéis seguidores do culto católico impediram, por quatro vezes, a realização de comícios do Partido Comunista Brasileiro, na cidade do Crato, para a escolha do novo presidente da República, dos senadores e deputados federais, nas eleições previstas para 2 de dezembro de 1945.

Em Juazeiro do Norte, uma única tentativa também fracassou, porque o local escolhido para o comício, a praça Almirante Alexandrino, fiou “repleta de Filhas de Maria, padres, mendigos e aleijados para”pegar” os comunistas(…) convencidos de que íamos roubar e levar os ossos do padre Cícero para Moscou”. 13

10 – Idem, ibidem.

11 – Idem, ibidem.

12 – Idem ibidem.

13 – CAVALCANTI Vulpiano. Memória Via. Natal: Editora Universitária da UFRN/Nossa Editora, s.d.p. 14.

VII

O Comitê Municipal do PCB no Crato sempre foi ativo, tanto a fase  clandestina pré-45, como n legalidade e, novamente, na segunda fase de clandestinidade pós-45. Embora ao fosse  numericamente expressivo, o partido  mantinha   um núcleo ativo, realizando movimentos de massa, atuante nas questões de terras, nas lutas populares, no movimento estudantil, presente  aos debates  públicos sobre  políticas nacionalistas.

O clero, aguerridamente integralista, anticomunista, mantinha  uma reação constante às ações do comitê do PCB, com  estrutura para mobilizar, em pouco tempo, os grupos de provocação aos seus eventos, como mostram os fatos que se seguem:

Lançada a campanha eleitoral, a estrela maior dos comunistas  era o seu candidato ao Senado, Jeová Motta, um militar de profissão, sobrinho-neto de Capistrano de Abreu, ex-fundador da Legião Cearense do Trabalho juntamente com Severino Sombra. Ex-integralista, Jeová Motta foi deputado  federal, eleito  pela Liga Eleitoral Católica. Decepcionado com Plínio Salgado renunciou ao mandato retornando à caserna para registrar uma metamorfose no seu comportamento político,  ponto de, em    1945, surgir como candidato a Senado pelo Partido Comunista.

O Comitê Municipal do PCB distribuiu um panfleto, anunciando o primeiro comício do partido para o dia 9 de setembro daquele ano, às  19  horas, na praça  Siqueira Campos, o centro de decisões políticas da cidade.

Irineu Pinheiro dá conta de que, no mesmo horário, marcharam da praça da Sé para  a praça Francisco Sá, nas proximidades  do local do comício, cinco mil pessoas, “aos vivas à religião católica e  morras ao Comunismo”. 14

Transferido para o dia seguinte, a segunda tentativa  não se concretizou , em função do elevado número  de devotos reunidos pelo clero, na praça  da Sé, para impedir a concentração do PCB. Os esquema  foi o mesmo: temeram, mais uma vez, os comunistas, realizar seu intento, ao qual  era    hostil a  quase   unanimidade da população  da  cidade”. 15

Para desestimular qualquer outra iniciativa dos seguidores  de Luiz Carlos Prestes, a diocese do Crato organizou um monumental  congresso anticomunista, com a participação de milhares de fiéis do Crato, Juazeiro do Norte e  Barbalha. Delegações de Barbalha, distante vinte quilômetros, e de  Juazeiro, distante dez  quilômetros,  conduziram, a pé, andores com imagens   dos padroeiros  das duas cidades, Santo Antonio, e Nossa Senhora das Dores, os quais se encontraram  com o orago de  Nossa Senhora da Penha, padroeira do Crato,  praça  da Sé.

Na solenidade de encerramento  do  congresso anticomunista, no dia 28 e outubro de 1945, o bispo diocesano, Francisco de Assis Pires externou as razões  para a recusa do Comunismo entre o seu rebanho:

“Não  quero Comunismo, porque o Comunismo me rouba os mimos preciosos do meu

rebanho as criancinhas  inocentes. (…)  Conspurcaria a honra e a dignidade da família

cratense,  verdadeira   jóia  preciosa   da  minha diocese. (…) Arrebatar-me-ia  a coroa

gloriosa    que  me  cinge  a  fronte,   meu  clero, (…)  intrépido  e  valente  que  eu diria

vocacionado para o martírio.” 16

Os comunistas, no entanto, programaram um novo encontro, desta vez, na Praça Francisco Sá, na noite de 21de novembro, faltando, portanto, dez das para o pleito. Os oradores falaram, mas  sob vaias, tornando-se  o ambiente  incontrolável.

Concentrados no bar Cairu, na Rua João Pessoa, no centro comercial da cidade, os comunistas se depararam, nessa noite, com uma “procissão de penitência”, à frente os próprios diocesanos, seguidos por todo o clero e milhares de fiéis, circundando a Ruas Senador Pompeu e João Pessoa, com parada obrigatória em frente ao bar Cairu e exaltadas  manifestações anticomunistas, onde o bispo e os padres tiveram trabalho para dispersar a multidão.

14 –PINHEIRO,  Irineu.  Efemérides  do  Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitária  do Ceará, 1963,

p.224.

15 – Idem, ibidem.

16 – Idem, ibidem.

VIII

Dois dias depois, 23 de novembro , nova tentativa, desta vez  na Praça Siqueira Capôs, mais tarde da noite. De pé num banco da praça, o candidato ao Senado, Jeová Motta, começou um pronunciamento sobre o processo de abertura democrática, sendo  ostensivamente interrompido por apupos e doestos de sacerdotes católicos exaltados contra o Comunismo e os comunistas.

Testemunha desses fatos, Irineu Pinheiro registrou o clima dessa noite quando o Partido Comunista, usando a franquia democrática que lhe garantia espaço político igual aos demais partidos, na pugna eleitoral, procurava colocar, o debate público, o seu programa eleitoral, procurava colocar, ao debate público, o seu programa eleitoral. Diz Irineu Pinheiro: “Tal o clamor do povo que ele Jeová não pode continuar. Por um momento temeu-se que a exaltação popular desfechasse em correrias e violências.(…) Horas antes do comício, na expectativa de desordens, tinham cerrado suas portas os cafés e bares da Rua João Pessoa e da Praça Siqueira Campos.” 17

Nessa mesma época, a caravana liderada  por Jeová Motta, em viagem pelo interior do Ceará, na tentativa de fazer propaganda política do seu candidato à presidência da República, Iedo Fiúza, enfrentou vexame semelhante em Senador Pompeu e em Juazeiro do Norte.

Apresentando-se como candidatos democratas, conforme a linguagem da época, e estimulados por um militante  do grupo, nascido na cidade, os caravaneiros visitaram, em primeiro lugar, o vigário de Juazeiro, convidando-o para o comício na principal praça da cidade, a Almirante Alexandrino, onde está a estátua de corpo inteiro do padre Cícero Romão Batista.

Em pouco tempo, a cidade inteira já sabia da presença dos comunistas e do comício programado. Dois estudantes da caravana procuraram um restaurante, onde pediram um café, sendo cercados, de repente, por dezenas de romeiros. Um deles cravou um punhal na mesa do restaurante, dizendo:  – Se for homem, diga que é comunista! 18

Para evitar um linchamento coletivo, o grupo se refugiou na casa  do juiz da comarca, sendo salvo por um providencial motorista de praça que o transportou, às pressas, até Lavras da Mangabeira.

Na campanha para as eleições de 1947, o candidato do PSD, Onofre Muniz, esteve no Crato, realizando comício na Praça Siqueira Campos, em 18 de dezembro  de  1946, depois de percorrer várias outras cidades da região. Em todas elas, recebeu manifestação de apoio de correligionários, e até de religiosos, sem que houvesse qualquer tentativa de impedimento, por ocasião dos seus comícios, o mesmo ocorrendo com Faustino de  Albuquerque, candidato da UDN. Para os dois, a liberdade política funcionou.

Quando visitava o Crato, em campanha, o desembargador Faustino de Albuquerque foi saudado pelo padre Leopoldo Fernandes que, em artigo de jornal, publicado no dia do comício, lembrava:

“Aqui,  como  alhures,  á um  grupo  de maus patriotas e péssimos católicos que vivem da

astúcia,  de  sinuosidades,  do  subterfúgio , das  surpresas, da penumbra, e nunca foram

vistos aos  doces clarões da verdade.” 19

Sem esconder suas  simpatias  pelo candidato e pela UDN, o padre Leopoldo Fernandes mostrava a força eleitoral de Faustino, afogado nas denúncias pessedistas de que se aliara aos comunistas:

“O  desembargador Faustino  é  candidato  de  alguns partidos coligados em torno de seu

nome; mas é principalmente candidato  da  União Democrática Cearense (sic) até  agora

a mais prestigiosa arregimentação partidária  do Ceará.”

17 – Idem, ibidem.

18 – Episódio narrado por Vulpiano Cavalcanti. Op. cit, p.14

19 – Cf. “O Povo”, Fortaleza, /1/47, 1ª p. Caderno Especial de Aniversário.

IX

Por último, fazia a defesa prévia  do candidato:

“…Acusar o desembargador Faustino de suspeito de comunismo, de comprometimento

com  o  Partido  Comunista,  de  aliança  secreta  com  esse  partido  ou  com  os  seus

representantes, é mais do que  uma mentira, do que uma calúnia, é um ultraje a um dos

membros mais eminentes de nossa mais alta corte de justiça.”20

A Circular nº 64 foi saudada com entusiasmo pelo clero da região Sul do Estado. “A Ação”, porta-voz oficial da diocese, estampou, em primeira página, pronunciamento do bispo diocesano, Francisco de Assis Pires, pra quem:

“A voz da Igreja é uma só e a mesma em toda parte”.

Explicitando o documento, em editorial, o semanário católico acrescentava: “Nela Dom Antonio Lustosa não quis invadir a seara alheia. Falou apenas  traçando diretrizes para católicos, (…) com autoridade, em nome desta  Igreja tão combatida e nunca vencida.” 21

“A Ação” estacou mais:

“Nestes tempos tão conturbados, quando o anticatolicismo está mobilizado e em plena atividade,há necessidade inadiável dos dirigentes  da Igreja imortal de Cristo tomarem suas naturais precauções. A luta está travada  em todos os recantos da terra.” 22

Por último, acentuava:

“Nos partidos políticos de orientação democrática do Ceará, há muitos candidatos de bons princípios. (…) Como irrevogável imposição de consciência, o católico deverá escolher um homem merecedor da confiança da Igreja.” 23

Passado o pleito, proclamado o vencedor – Faustino de Albuquerque – por quem a hierarquia católica não nutria a menor  simpatia, Dom Francisco de Assis Pires, em circular dirigida aos fiéis, proibia, no âmbito da sua diocese, a leitura da “Gazeta do Cariri”.

O jornal havia publicado artigo criticando o Papa, merecendo, como reação da Igreja, a promulgação de ordem expressa proibindo a sua leitura pelos católicos. Neste documento, Dom Francisco justifica a medida extrema:

“Num intuito perverso de afrontar o sentimento   religioso do nosso povo, ousou-se lançar o escárnio e o desprezo  contra aquele a quem o Divino Salvador confiou a missão de pastor supremos das almas e chefe da sua santa Igreja.” 24

Aos vigários Dom Francisco Pires mandava fossem realizados atos de desagravo e ultrajada na veneranda pessoa de seu augusto Chefe. E ordenava: “seja esta lida e explicada aos fiéis, mais de uma vez, em hora de função religiosa.” 25

Na justificativa da circular está dito que a proibição da leitura da “Gazeta do Cariri” pelos fiéis católicos foi em virtude de se ter o jornal “convertido em veículo de impiedade e em órgão propagandista da nefasta doutrina do Comunismo ateu.” 26

O semanário era editado com a colaboração de um grupo de militantes do PCB, entre os quais, José Figueiredo de Brito, Aminadad Arruda Campos, Francisco de Assis Leite, Antônio Machado, Jurandir Temotéo, Eloy Teles de Menezes e José Figueiredo de Brito Filho, entre outros.

20 – Idem, ibidem.

21 – Cf. “A Ação”, Crato, 12/1/47, 1ª p.

22 – Idem, ibidem.

23 – Ibidem.

24 – Cf. “O Nordeste”, Fortaleza, 12/2/47, p.3.

25 – Idem, ibidem.

26 – Ibidem.

X

Em todas as igrejas e capelas da região, por ocasião das missas, os sermões centralizavam o assunto da circular. A “Gazeta do Cariri”, como todo jornal alternativo, teve dias curtos , a partir da recusa de sua impressão, pelas gráficas, e da compra dos exemplares, pelo público, temendo a excomunhão.

Instalada em 1940, a diocese de Limoeiro do Norte teve pouca atuação durante a campanha de 1947. Poucas são as informações ligando-a aos acontecimentos, tais  como a aceitação da Circular nº 64, do arcebispo de Fortaleza e a troca de mensagens  entre  os candidatos e o bispo metropolitano, Aureliano Matos.

O antístite, por exemplo, remeteu telegrama ao general Onofre Muniz, candidato do  PSD, por ocasião da homologação do seu nome, pelo partido, cumprimentando-o pela conferência realizada na Associação Comercial do Ceará, quando o candidato defendeu o barramento do Rio Jaguaribe, para efeito do melhor aproveitamento das águas nos cultivos agrícolas das áreas margeadas pelo rio.

Dom Aureliano Matos, na mensagem, transmite aplausos ao general por haver  revelado “perfeito conhecimento de nossa zona, de suas necessidades (…) e as vantagens que a obra poderia trazer para este ubérrimo vale.” 27

Um dia antes do pleito, Dom Aureliano Matos renovava sua orientação sobre o documento da hierarquia católica em relação aos candidatos:

“Dom Antônio de Almeida Lustosa, consultado pelos bispos de Crato, Sobral e Limoeiro do Norte, a respeito d recomendação dos candidatos a Governador do Estado, respondeu que continuava de pé a Circular 64, isto é, que os católicos não podem votar em candidatos amparados pelos comunistas. Esta é, portanto, a palavra oficial da diocese de Limoeiro.” 28

A Procissão  noturna:  sermões, matracas e alcatrão

Manoel Aéri Ferreira,29 um sertanejo nascido em 1925 no Riacho do Sangue, Solonópole, no Sertão Central do Ceará, quando o então distrito pertencia a Jaguaribe, é  um dos personagens deste episódio. O outro é José Pereira da Silva, conhecido por José Cadete e já falecido.

Aos dezoito anos, em 1944, acossado pelas secas, e seguindo o destino de sua geração, decidiu emigrar para São Paulo. Vendeu por qualquer preço os seus bens, de pequeno valor, e, com o produto arrecadado, partiu. Tinha sido aconselhado a não ir para o Amazonas, como era de costume, por um companheiro de infância que foi, viu e não se deu bem com o clima.

No percurso da viagem, fez uma parada em Missão Velha, na região do Cariri, onde fixou residência, tornou-se comerciante, casando-se no mesmo ano. Nas eleições parlamentares de 1945, votou para deputado federal em Francisco Monte. Getúlio Vargas tornou-se o seu ídolo e o Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB, a sua agremiação política.

O fim da guerra, a redemocratização do país, o surgimento dos debates políticos, com a aparição dos novos partidos, a escolha do novo Presidente da República, do Congresso Nacional, levaram Manoel Aéri Ferreira a descobrir a leitura, a política, as idéias socialistas e  gosto pelo debate. Alfabetizado na roça, pouco aprendeu, pelas limitações do ambiente cultural na zona rural onde morava. Reciclado em casa, empolgou-se com a leitura.

Pela leitura dos jornais, especialmente “O Democrata”, 30 a partir de 1946, e dos livros da Editora Novos Rumos, percebeu um mundo novo, contestador, capaz de traduzir as angústias do camponês, por ele vivenciadas na carne, e de apontar as saídas para um país economicamente desigual. Passou então a ler economia política. Esse foi o seu aprendizado.

27 – Cf. “Gazeta de Notícias”, Fortaleza, 12/11/46, p. 3.

28 – Cf. “O Nordeste”, Fortaleza, 18/1/47, 1ª p.

29 – Cf. entrevista concedida ao autor.

30 – “O Democrata” foi adquirido pelo PCB, em 1946, ao senador Olavo Oliveira.

XI

Da convivência com um microgrupo de discussões, onde se projetava, com ares de herói, a figura de Luiz Carlos Preste, surgiu uma identidade  de pontos de vista e uma admiração incomum pela União Soviética e o seu modelo de sociedade.

A simpatia Pelo Partido Comunista do Brasil vinha no curso natural dessas conversações, exatamente quando o PCB, saindo da clandestinidade, se apresentava como um partido legal, constituindo, pelo voto livre e soberano, as suas bancadas parlamentares em todos os níveis de poder.

Praxe da época, o microgrupo, formado por cinco simpatizantes das idéias irradiadas de Moscou, através da sua Rádio Central, por eles captadas em ondas curtas, cumpriu um período de observação, de execução de tarefas, de estudos do marxismo e do bolchevismo. A obra “Que fazer”, de Lenine, e “Os Problemas do Leninismo”, de Stalin, abriam a lista da literatura russa de fácil processo aos militantes.

O jornal “A Classe Operária” também não era desconhecido. Mas o empenho maior foi par a divulgação de “O Democrata”, para a arrecadação de contribuição de simpatizantes e para a venda de rifas e outras promoções das campanhas de finanças do PCB.

A primeira célula do PCB em Missão Velha surgiu em 14 de setembro de 1948, integrada por Manoel Aéri Ferreira, José Pereira da Silva, Gaspar Pinheiro, Sebastião Uchoa e João Soares. Os cinco “iniciados” tiveram como chanceladores dessa adesão Raimundo Uchoa Diógenes, um viajante de produtos farmacêuticos; Aminadad Arruda Campos, um protestante e mestre de torneiria mecânica, residente no Crato; e o cabo PM, Miguel Bezerra. O ato formal da constituição da célula foi rápido, parra não despertar os curiosos. Houve cumprimentos e compromissos de trabalho, em prol do partido.

A primeira célula comunista do município caracterizado por uma economia agrícola e pecuária, com predominância dos canaviais d Vale do Cariri, dos engenhos de rapadura, da exploração da mão-de-obra agrícola e amplo cultivo de algodão, surgia quando o Partido Comunista  estava retornando à clandestinidade.

Identificados pelo jornal que distribuíam na cidade, “O Democrata”, pelas discussões nos bares, restaurantes, cafés e nas praças públicas, os comunistas começaram a sofrer represálias na comunidade. Mesmo assim, cumpriam a tarefa de provocar o debate, escandalizar, propagar o nome de Prestes, de divulgar as realizações do Estado Soviético, de criticar a política e os políticos reacionários brasileiros, a partir do anticomunismo de Eurico Gaspar Dutra.

O grupo começou a se esvaziar. Dos cinco iniciais, restaram três: Aéri, Zé Cadete e Sebastião Uchoa. Mudaram de local de atuação Gaspar Pinheiro e João Soares.

Uma denúncia de malversação de recursos públicos, publicada em   “O Democrata”, por um filho de Sebastião Uchoa, na época, estudante, levou a UDN local a pressionar o Governo do Estado contra o pai do denunciante, na época, fiscal de algodão da Secretaria da Agricultura, junto às cinco indústrias de beneficiamento do produto que lideravam a economia do município.

Uma comissão de inquérito do Serviço Público Estadual, ao invés de apurar a denúncia, processou Sebastião Uchoa, punido administrativamente e transferido da cidade, por julgarem os udenistas ser ele o denunciante. E os recursos do Estado para a recuperação, pelo município, do Grupo Escolar Pedro Rocha, não foram averiguados.

Para livrar o companheiro do peso do Estado policialesco, Aéri Ferreira assumiu a responsabilidade da denúncia, o que pouco influiu na transferência, mas lhe causou a ira  do então prefeito municipal, Francisco Arrais Mais, surpreendido com o noticiário do diário comunista.

As conseqüências não tardaram: retaliações, ameaças e, por último, prisão, sem flagrante delito, queixa formal na polícia ou ordem judicial. Mobilizado pelo PCB, o advogado Odálio Cardoso de Alencar deslocou-se de Barbalha para Missão Velha, para relaxar a prisão, conseguida a muito custo.31 Ela foi à primeira. Depois, viriam mais duas, sempre no mesmo ritual.

31 – O advogado Odálio Cardoso confirma o fato.

XII

Ao arrepio da lei. Os motivos: as pichações e um sério atrito com o promotor de justiça da comarca, Osias Uchoa Sá, um integralista histórico, desde os tempos de estudante do Liceu do Ceará.32

Visado pelo prefeito, inimigo do promotor, por razões ideológicas, enfrentando a indiferença do juiz de direito, Carlyle Martins, considerando-se incompetente para liberá-lo, por ser a autoridade coatora o Secretário d Polícia, e as constantes “caçadas” o delegado, Aéri fechou o quadro com o enfrentamento d um novo adversário, ousado e imbatível: o vigário da paróquia.

A questão com o vigário radicalizou-se quando os comunistas, em cumprimento à orientação do PCB, (Aéri e Zé Cadete) picharam vários espaços urbanos, até mesmo as largas, centenárias paredes da matriz de São José, com o slogan “O Petróleo é nosso”. Foi na campanha do petróleo de 1948.

Em 1949, o padre David Augusto Moreira, vigário da paróquia, um integralista histórico, como promotor, treinado nas hostes do grupo de sacerdotes liderados  pelo monsenhor Pedro Rocha, reitor do Seminário São José , do Crato, tinha costume de realizar manifestações de rua.

Ele era figura de primeiro plano na movimentação da massa católica nas diversas tentativas de impedimento dos comícios programados pelos comunistas, no Crato, durante a campanha eleitoral de 1945. Em Missão Velha, como vigário, substituindo uma doce figura do clero, o padre Francisco das Chagas Barros, afastado da paróquia pó haver caído no esquema de rejeição do prefeito da cidade, iniciou um combate feroz aos dois comunistas.

Em todas as missas, aos domingos, e especialmente, à noite, por ocasião da bênção do Santíssimo Sacramento, a temática era uma só durante os sermões e as prédicas noturnas: o modelo de sociedade soviética, a falta de liberdade, a ausência de propriedade privada, as perseguições ao catolicismo, o predomínio do ateísmo e até a estória do fígado das crianças…

Numa madrugada, depois de semanas exprobrando os comunistas, como parte da preparação da sua tropa de choque, o sacerdote deixou que o relógio da matriz assinalasse meia-noite para iniciar uma procissão à luz de velas, onde os componentes das irmandades leigas portavam seus estandartes e paramentos nas cores vermelha, amarela e branca, subindo e descendo as ruas centrais da cidade, cantando benditos, rezando ladainhas, recitando o terço, ovacionando a Igreja e condenando  o Comunismo.

Os seguidores do séqüito portavam archotes medievais, transportavam uma cruz enorme ao centro do cortejo e bandeiras pretas para sinalizar a morte do Comunismo na cidade. Um deles, mais afoito, Josino Araruna, carregava um balde cheio de alcatrão (piche), usado como tinta para desenhar o símbolo do Cristianismo – a cruz – nas portas das residências dos dois comunistas, dos seus familiares e de pessoas com as quais mantinham relações de amizade.

A proporção que o cortejo circulava, e pelo ineditismo das cenas dantescas do espetáculo épico-trágico-religioso, as famílias iam acordando, uns temerosos, observando o alarido, de suas portas; outros se aproximando da multidão para observar, de perto, as cenas da noite de terror! Era a vingança dos católicos contras os cidadãos que, usando um direito constitucional, tentavam repercutir, em ambiente inadequado, a utopia do Cavaleiro da Esperança.

Outra demonstração de como, na região do Cariri, o anticomunismo era acentuado: em abril de 1948, por ocasião das eleições gerais na Itália, o Partido Comunista Italiano – PCI, foi derrotado. Por esse fato, a Câmara Municipal do Crato aprovou, então, uma saudação ao Papa, na pessoa do bispo diocesano, Francisco de Assis Pires, o que foi feito por uma comissão de vereadores. 33

32 – O nome de Osias Uchoa Sá, quando ainda estudante do Liceu do Ceará, consta da primeira

relação dos fundadores da A.I.B. em 1932. Cf. MONTENEGRO, João Alfredo de Sousa. O Integralismo no Ceará. Variações Ideológicas. Fortaleza: Imprensa Oficial do Ceará, 1986, p.20

33 – PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1963, p. 231

XIII

A proximidade dos religiosos da Zona Sul com os seguidores de Plínio Salgado mesmo depois das perseguições sofridas durante o Governo Menezes Pimentel, quando, a exemplo do que ocorreu em Fortaleza, alguns sacerdotes foram presos, está assinalada no fato de que, por ocasião da inauguração de sede do Partido de Representação Popular – PRP, ainda no Crato, o convidado para aspergir com água benta a imagem do Cristo existente no recinto foi o monsenhor Francisco de Assis Feitosa, vigário geral da diocese e autoproclamado integralista. A imagem do Cristo  crucificado era ladeada por fotos ampliadas de Plínio Salgado e do Duque de Caxias. 34

Como se vê o processo democrático é de difícil implantação. Nem sempre a lei é igual para todos. Durante as campanhas eleitorais de 1945 a 1947, os candidatos dos partidos então emergentes tiveram ampla liberdade para fazer proselitismo político no Cariri. Exceção única feita ao Partido Comunista do Brasil, o qual, registrado junto à Justiça Eleitoral, atuando dentro da legalidade, garantido pela Constituição nascente, não mereceu sequer o espaço para que seus membros expusessem suas propostas em praça pública. A igreja da região Sul, a exemplo da região Norte, mantinha uma “azeitada” máquina de mobilização de fiéis na desarticulação  dos comícios dos comunistas.

34 – Idem, ibidem.

Francisco Wilson Noca

Jornalista e historiador

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