Em Paris, com Antônio Bandeira

Em Paris, com Antônio Bandeira

Deliciosos, formidáveis, inesquecíveis os anos sessenta, das mudanças de comportamento, das nossas primeiras transgressões, das novas descobertas para a juventude…

Por aqui vivia-se um clima de franca e efervecente prática democrática, do debate político, com as mais variadas correntes de pensamento sendo postas em questão, em acaloradas discussões.

No campo artístico surgiam os Beatles, no mundo, no rio, a bossa nova, e mais o cinema novo, a poesia concreta, as ousadias no teatro, na literatura e em outras manifestações artísticas.

Era um tempo plural e as mais variadas conversas corriam soltas pelos bancos das praças, pelas salas de aula, pelos ambientes de trabalho, pelos bares da vida e todos sonhavam com um Brasil desenvolvido, sem pobreza, independente das amarras do imperialismo e do grande capital, com uma sociedade de novo tipo, mais justa, mais humana,  solidária.

De repente, em 1964, no dia da mentira, um primeiro de abril aconteceu o golpe militar.

Ninguém queria acreditar, mas era verdade: o popular presidente João Goulart deposto, exilado no Uruguai, congresso fechado, políticos de esquerda cassados e perseguidos.

Esta traição ao povo brasileiro, apagando um sonho, sufocando  esperanças, logo se auto denominou de revolução democrática brasileira e era tratada pelos bajuladores dos donos do poder, como  “a redentora’, movimento monitorado pelo interesse do grande capital estrangeiro.

“A redentora” intensificava  prisões e  perseguições políticas e os presos, considerados da mais alta periculosidade, foram confinados na ilha de Fernando de Noronha, de onde era impossível fugir, quanto mais se comunicar ou organizar qualquer revanche. Era um tempo de medo e de mordaça onde não havia espaço para a livre manifestação do pensamento.

Àquela época, eu, jovem  universitário com mais dois colegas, inconformados com a ditadura ousamos desafiá-la, arquitetando plano secreto para participar do festival da juventude pela paz e amizade entre os povos que aconteceria na África,  Argélia, reunindo pensadores e lideranças de esquerda do mundo inteiro. Meu amigo Félix Ximenes havia participado do último festival, acontecido na Finlãndia,  em 1962,  e me contara maravilhas. Havia conhecido grandes personalidades, incontáveis experiências socialistas nos países do leste europeu, e estado até em cuba, com Fidel Castro  então começando sua revolução socialista.

A viagem do Felix acontecera  a época da primavera democrática de João Goulart, dentro da maior legalidade, e eu teria que viajar do modo mais precário quase clandestino pois vivíamos em plena ditadura militar, com o cearense marechal Castelo Branco como o ditador de plantão.  Sem dinheiro comecei a vender tudo o que havia adquirido ao longo dos meus primeiros anos de trabalhador desde quando “cabista” (menor aprendiz, do BNB), coisas como máquina de escrever, coleções de livros, aparelho de som, etc. Ao mesmo tempo não parava de enviar correspondências para entidades culturais  estrangeiras para montar um fictício programa que justificasse minha ausência do Brasil por pelo menos dez meses, tempo que eu imaginava permanecer no exterior. Como sempre incansável e determinado não desanimava.

Apesar das inúmeras cartas sem resposta e das várias negativas que nos chegavam eu continuava com o projeto.

Foram meses trabalhando na surdina e aos poucos conseguimos documentos para elaborar  um programa de mentira, que jamais aconteceria, para justificar nossa ausência.

Com o apoio do saudoso cunhado Luiz Edgard  Cartaxo de Arruda, socialista, redigimos solicitação de afastamento do banco do nordeste, onde trabalhávamos, para cumprir  o tal programa de estudo no exterior.

Com os parcos recursos que dispúnhamos conseguimos comprar passagem apenas de ida (naqueles bons tempos ainda era possível) Recife/Dakar, pela empresa Aerolíneas Argentina, e começamos a inacreditável e emocionante aventura de desafiar a ditadura.

Com o passaporte na mão apanhamos o semi-leito da expresso de luxo, rumo à Recife, onde apanharíamos o avião.   Lá morava meu irmão Francisco Franco que ficou pasmado parecendo nem acreditar no que estava acontecendo, quando falei que viajaria logo mais. Perguntou-me quanto eu levava em dinheiro e eu respondi, prontamente, quase 400 dólares que era toda a “fortuna” que eu conseguira amealhar. Ele assustou-se mais ainda, dizendo-me que era impossível viajar daquela maneira.

Eu o tranquilizei informando que tinha vários contatos secretos com o partido comunista francês, que me apoiaria, tinha endereços de brasileiros que moravam na Europa, mas ele não conseguia dissimular sua grande apreensão. Assim, nem disse a ele o tempo que pretendia demorar  no exterior com aquele pouco dinheiro que eu levava.  Embarquei logo à noitinha no  aviãozinho que me transportava para a capital do Senegal, do outro lado do atlântico, levando mais cem dólares que o mano franco me entregou, nervoso, na hora da partida.

Após as emoções do Senegal, Espanha, Portugal, finalmente chegamos de trem, em Paris, inebriados com o que já havíamos visto  e, sobretudo, com o esplendor da cidade luz.

Ainda atordoados, deslumbrados, fomos á redação do jornal l´humanité, do partido comunista, para o primeiro contato, levando preciosa correspondência de companheiro do nosso saudoso PCB, o querido partidão, para ser entregue ao jornalista que coordenava a participação das delegações que iriam ao festival fora dos trâmites legais, precisando, por isto, de patrocínios, ajudas especiais.

Pela primeira vez em toda esta aventura eu estremeci, literalmente.o atencioso jornalista, gentil companheiro, nos dava a péssima notícia. Acabara de acontecer um golpe militar na Argélia. Assim, o festival da juventude pela paz e amizade  fora transferido para o próximo ano, na Bulgária. Ficamos realmente sem saber o que fazer, desesperados.

O pouco  dinheiro que dispúnhamos nem contava. Passagem de volta, não tínhamos. Pior: como justificar volta tão repentina ao Brasil?! Seríamos presos pela ditadura militar? Perderíamos o emprego, no banco do nordeste? Comentamos tudo isto como jornalista que nos recebera e ele, prontamente, conseguiu para nós, hospedagem gratuita no  albergue da juventude do partido comunista, situado numa graciosa chácara, nos arredores de paris, onde fomos muito bem acolhidos.

E agora, o que fazer ? Naqueles tempos nem se falava em ligação telefônica internacional e todos os contatos precisavam ser feitos pelos correios. Seguindo orientações dos companheiros não demos a ninguém o endereço do albergue da juventude do partido comunista. Todas as cartas eram enviadas para o endereço  da embaixada do Brasil, na elegante Avenue Montaigne, onde passávamos, regularmente, em busca de mensagens esperando solução para nossos graves  problemas.

Andava tão à deriva, desorientado mesmo, cheio de saudades e de temores que, num sábado, nem me dei conta do dia, saí cedo do albergue onde estava hospedado em busca de encontrar uma luz, alguma correspondência salvadora, que   estivesse  na embaixada.

Foi um dia realmente inesquecível. Era começo de verão, dia claro, céu muito azul, mas eu, talvez por me sentir tão desprotegido, coloquei um chapéu de couro, artesanal, que eu levara imaginando oferecer a alguma importante personalidade, no tal festival, que não aconteceu, e com ele fui até a embaixada. Apertei, repetidas vezes, a sineta para chamar alguma pessoa já que as portas estavam cerradas. Apareceu uma espécie de zelador do prédio apontando para a placa metálica onde estava o horário de funcionamento da embaixada. E completou: hoje é sábado, volte segunda feira…

Mais desolado ainda saí a perambular pela elegantíssima área de paris. Era cedo e mesmo sendo verão o movimento ainda era pequeno. Caminhando eu deslumbrava-me ante as lojas e cafés da suntuosa região quando, de repente, ouvi uma voz forte, que me assustou, um grito: “pau de arara !!!”   pensei comigo mesmo… Estou tendo alucinações ? Como pode alguém gritar “pau de arara” em plena Avenida Chmps Elysées? O grito repetiu-se e eu, tomei coragem, muito assustado,  decidi  voltar pela calçada e saber de onde vinha o grito, quando vejo  o grande Antônio Bandeira, que eu conhecia de fotografias, a gargalhar, chamando-me para ir até onde ele estava, um café encantador, com cadeiras na calçada.

Logo ele acertou dizendo “já sei, vem do Ceará, né mesmo?”. Eu disse que sim, ele pediu-me para sentar e apresentou-me seu companheiro de mesa que era o mais afamado colunista social do Brasil, daqueles tempos, o Ibrahim Sued, muito bem trajado e sem conseguir dissimular sua rejeição ante aquele aventureiro desajeitado, de repente, convidado para tomar café com eles.

Ibrahim não disse uma única palavra, durante todo o café,  enquanto o bandeira não parava de falar. Ele parecia querer saber tudo de toda minha aventura e quando eu disse que não tinha vindo de pau de arara mas quase, pois em  um  semi-leito da expresso de luxo que me levara de fortaleza a recife, onde apanhei o avião, ele quase não parava mais de rir.  Convidou-me para tomar café dizendo que eu não pagaria nada, que era seu convidado, tudo num clima de bom humor que me fez muito bem.

Eu estava me sentindo tão satisfeito que esqueci as recomendações dos companheiros de partido  e, de repente,  revelei que estava hospedado no albergue da juventude do partido comunista, o que pareceu incomodar ainda mais ao jornalista Ibrahim Sued, informando também que recebia correspondências na embaixada, ali perto, por questões de segurança, mas que naquele dia ela estava fechada, tendo gerado assim o enorme prazer daquele encontro. “passo na embaixada quase todos os dias”, disse eu ao Bandeira.

Certamente minha sinceridade, meu modo franco e espontâneo de falar, gerou uma certa cumplicidade entre nós  e, ao término do café, parecia que já éramos velhos amigos.

Ele não me disse seu endereço, nem telefone tampouco tomei a liberdade de pedir. Mas foi uma manhã inesquecível que me devolveu a alegria de viver. Jamais imaginei que  por sorte nos encontraríamos outra vez. Dois dias depois, passo na embaixada sempre em busca de correspondência e recebo um envelope, nele um cartão do  Bandeira, convidando-me para jantar, deixando claro, numa frase grifada, que pagaria a conta. O jantar seria na noite daquele mesmo dia, eu fiquei super contente e  compareci ao local marcado para o encontro, chegando antes da hora, bandeira chegou logo em seguida  saímos os dois caminhando peloquartier latin até um pequeno, mas super simpático restaurante, situado numa ruazinha transversal, onde ele parecia ser cliente bem conhecido.foi uma noitada memorável  num clima da maior camaradagem, de generosidade e bom humor que ficou marcada em minha mente para sempre.

Tivemos depois mais alguns poucos encontros felizes, saborosamente  irresponsáveis, até que, um dia, ao nos despedirmos, ele me passou um papel com nome e telefone de uma pessoa e revelou-me tratar-se de um médico, grande amigo dele, a quem ele contara toda minha aventura. Completou dizendo  que eu poderia recorrer ao tal médico, em caso de qualquer necessidade, que ele me atenderia, bastando dizer que era o “pau de arara”, amigo do bandeira. Fiquei assustado pois falou-me rapidamente que estaria ausente de paris por um tempo, súbito desapareceu na noite, sem dizer adeus, deixando a conta paga, talvez, no seu íntimo, imaginando que não nos veríamos jamais.

Nunca precisei telefonar para o tal médico pois logo os solidários companheiros conseguiram matrícula para mim na universidade, passei a comer barato, nos restaurantes estudantis,  consegui uma viagem de estudo e trabalho, na Suíça, depois por semanas percorri toda a Itália, de norte a sul, veio a época do natal, passamos férias em casa de família amiga, ali também consegui um trabalho temporário que me deu algum dinheiro. Assim, se não vi o festival, consegui cumprir o programa de estudos e voltei ao Brasil para o carnaval, podendo comprar presentes, inclusive belo e rico vestido para gódiva pinto, trazendo ainda alguns dólares no bolso que “torrei” no carnaval, onde organizamos o bloco “Le Blouson Noir”, no Maguary, uma certa homenagem domina a deliciosa loucura que foi esta inesquecível viagem.

Pouco tempo depois, vi na imprensa, Bandeira morreu em Paris,  foi um momento de profunda tristeza solitária para mim.

Quando, Maria Luiza Fontenele assumiu a prefeitura e convidou-me para sua equipe, meu gabinete ficava justo na galeria Antônio Bandeira, sub solo da Praça do Ferreira, onde realizamos históricas e generosas promoções, inclusive a primeira campanha ostensiva de prevenção da AIDS, com distribuição de preservativos, as populares camisinhas, em plena praça, assunto que mereceu comentários na imprensa nacional, e depois viria a servir de exemplos a campanhas institucionais de saúde pública.

Bandeira sempre lembrado e quando o então prefeito Juraci Magalhães decidiu reformar a Praça do Ferreira, extinguindo a galeria Antônio Bandeira, que ficava no seu sub-solo obtive a promessa, felizmente cumprida, que ela voltaria a existir, e ainda de melhor formato.

Hoje a galeria Antônio Bandeira funciona no edifício do antigo mercado central, onde também está o memorial de outra querida personalidade, Sinhá D´Amora.

São passados mais de quarenta anos, neste dia ensolarado de hoje, tenho o prazer de relembrar aquela manhã, quando conheci Bandeira, rememorando sua franca, generosa gargalhada.

Cláudio Pereira (In Memoran)

● Administrador, jornalista e comunicador

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