Verdeixa, o Canoa Doida

Verdeixa, o Canoa Doida

Dentre todos os viventes, ninguém pode exceder a fama que Alexandre Francisco Cerbelon Verdeixa, o Pe. Verdeixa, alcunhado o Canoa Doida, conquistou entre seus flâmulos e pares, hodiernos e d’antanho.

Ente legendário e inapagável nas tradições orais e escritas do nosso Ceará, o Pe. Verdeixa é dos raros vultos cuja sobrevivência se alicerça sobre anedotas; Figura antológica e curiosíssima; Reputação perpetuada por diabruras e facéceis. Deixou fama imperecível na crônica antiga do Ceará. João Brígido, seu primeiro biógrafo e amigo consagrou-lhe as primeiras trinta e seis páginas do seu livro, O Ceará – Lado Cômico, 1899. Diz o mesmo João Brígido que não se sabe ao certo o local do seu nascimento: se no Rio do Peixe na Paraíba, atual Cajazeiras; se em Goiana, Pernambuco; se em Mossoró no Rio Grande do Norte ou no Crato no Ceará.

Terra de contrastes e extremos, esse nosso Ceará de guerra! Terra que produziu figuras das mais dignas e notáveis; Sacerdotes probos e íntegros, da envergadura moral de um Pe. Ibiapina. Como comparar o modus vivendi do Pe. Verdeixa diante do exemplo de cristandade e pundonor que fora o Pe. Cícero Romão Batista?! Todavia, o Ceará gerou aquele que fora o anti-Cristo em batinas; E pior… talvez conterrâneo do mesmo Pe. Cícero!

Para dirimir quaisquer dúvidas dos historiadores quanto às origens do Canoa Doida, faço traslado na íntegra, dos termos do seu assentamento batismal:

“ALEXANDRE, filho natural de Feliciana Maria da Conceição, natural da Villa de Goiana; neto materno do Alferes João Mendes Monteiro, natural da Villa de Goiana e de D. Maria dos Milagres dos Anjos, natural da mesma Villa de Goiana. Nasceu a 3 de janeiro de 1803 e foi baptizado a 14 do mesmo mêz e anno, por mim, Cura abaixo assignado, recebendo os Sanctos Oleos, nesta Igreja Matriz de Nossa Senhora da Penha da Villa Real do Crato. Foram padrinhos o Tenente Antonio Pereira Pinto e sua tia materna Anna Rita da Luz, do que, para constar mandei fazer este assentamento, em que me assigno: Miguel Carlos Saldanha, Párocho.”

Afirmam seus contemporâneos que desde pequeno, se assinalou pelas travessuras maldosas no gênero das do lendário Pedro Malasartes. Não conheceu o pai. A mãe, Dona Feliciana, cavilosa e piedosa, oscilava entre “as asneiras do marido e as diabruras do filho”, casada em segundas núpcias com um professor de latim, boêmio e piegas, Joaquim Teotônio Sobreira.

Em 1824, Verdeixa passou das traquinadas da infância às aventuras da adolescência, alistando-se nas forças republicanas da Revolução de 1824 que, sob o comando de José Pereira Filgueiras e Tristão Gonçalves de Alencar, ocuparam a vila cearense do Jardim, tomando parte no massacre dos presos e na roda de pau que se lhes aplicou, dando de cacete, com as duas mãos, em muitos pacientes, até caírem inanimados. Após a derrota dos rebeldes, passou-se para os legalistas do Coronel Agostinho José Tomás de Aquino, plenipotenciário do Icó.

Durante seis anos, de 1824 a 1830, cursou o seminário de Olinda, ordenando-se em 1831 e sendo logo nomeado vigário da Vila de São Vicente Férrer das Lavras da Mangabeira, na região sul do Ceará.. Como e por que se decidiu a seguir a carreira eclesiástica, quando até então não denotara a menor propensão para ela e os pendores naturais do seu espírito o inclinavam a outros rumos, é coisa que jamais conseguiremos saber. Que se poderia esperar dum sacerdote, sem vocação formal e sem preparação adequada, solto num meio agitado como a região do Cariri naquele tempo? Teceu ali uma “enredada diabólica” malquistando o coronel Agostinho com Pinto Madeira, o infeliz rebelde de 1832, satirizou o perverso advogado Simplício José Rocha, levou à ruína o juiz leigo Antônio da Rocha Moura, desancou em versos o famigerado João André Teixeira Mendes, o Canela Preta, e até nos casamentos que celebrava ofendia os noivos com pilhérias indignas do seu sagrado ministério. Daí o ódio que o cercou e o obrigava a viver sempre de sobreaviso, ocultando-se, fugindo e homiziando-se.

Diz ainda o correto historiador João Brígido, que o Pe. Verdeixa tinha uma especialíssima devoção pelo Sacramento do Matrimônio De todas suas fainas como cura d’almas, a que mais o aprazia era exatamente a celebração das núpcias. Deixou de comparecer a incontáveis celebrações de sua inteira responsabilidade, como Batizados; Primeira Eucaristias; Unções de Enfermos, e outras, mas o que se saiba, nunca a um casamento! Sempre diligentíssimo, chegava onde quer que fosse , sob qualquer intempérie climática, horas de antecedência da celebração

Entendamos o porquê desta curiosa predileção:

Ardiloso, furtivo e malvado, o Canoa Doida, ouvia primeiro a confissão da nubente, uma vez percuciente da vida pregressa da indigitada, ameaçava logo a infeliz de revelar ao futuro esposo e até mesmo a toda urbe, certas minudências daquela confissão. De posse daquelas valiosíssimas informações, angariava com imensa facilidade os favores sexuais da noiva sob o prenúncio de dar com a língua nos dentes. A noiva poderia conceder seus favores ali mesmo, in situ (dentro do confessionário) ou preferencialmente no interior da sacristia, dispositivo que oferecia maior espaço e conforto, prestando-se com maior eficiência à volúpia e demais caprichos sexuais do nosso Canoa Doida.

Mestre em ações indecorosas, quando não obtinha da noiva confissões mais “significativas”, não se continha, e fazia toda sorte de propostas imorais. Foi mesmo espancado por um noivo que não pôde suportar os excessos do padre.

Teve de deixar o sertão e vir para Fortaleza, onde se tornou logo inimigo do presidente da província, o Padre e Senador Martiniano de Alencar. Enganou os pobres índios mansos que ainda viviam na povoação de Arronches, hoje Parangaba, fazendo-os assinar uma representação em termos tais que os levou à cadeia. Blaterava por toda parte contra o presidente Alencar e, caçado pela Polícia, refugiou-se na casa do negociante português, Martinho Borges, onde demorou o tempo que quis, obrigando-o a tratá-lo à vela de libra sob a ameaça de denunciar-se às autoridades, o que acarretaria os piores aborrecimentos ao seu hospedeiro, numa verdadeira chantagem! Ia a cavalo insultar Alencar debaixo das janelas do palácio do governo, gritando-lhe a alcunha – Padre Cobra! E fugindo imediatamente a galope.

Juiz de paz em Baturité, praticou as maiores arbitrariedades. Quando o quiseram prender, escondeu-se num buraco coberto por uma tábua sobre a qual sua mãe placidamente fazia renda, trocando os bilros na almofada. Mal os da força pública, que não o tinham encontrado se distanciavam, insultava-os duma janela. Voltavam, davam busca na moradia e nada. Ele estava no buraco sob as saias rodadas de Dona Feliciana.

Envolvido numa tentativa de morte contra o presidente brigadeiro José Joaquim Coelho, mais tarde Barão da Vitória, defendeu-se pessoalmente no júri a que o submeteram, encalacrando seu companheiro, o velho capitão-mor Barbosa. Quando este lhe perguntou por que lhe fizera tanto mal, respondeu que, se ele fosse solto, passaria fome na cadeia, porquanto até ali vinha comendo do que a família do respeitado ancião mandava. Corria que tinha o dom da presciência, avisando às pessoas dos desastres iminentes que as ameaçavam e adivinhando a chegada das patrulhas que o procuravam. Ia se tornando,pois aos poucos um personagem lendário.

Tantas fez, que se viu forçado a procurar outros ares. Embarcou para o Sul e conseguiu a nomeação de vigário de Carapebus, na província do Rio de Janeiro. Ali amotinou contra si todos os espíritos, de forma tal que o amarraram às costas dum cavalo e o levaram até fora dos limites da paróquia. Encontrando um conhecido no caminho, disse-lhe que aquela boa gente o amava tanto que o levaram daquele jeito para que não fugisse aos seus carinhos.

Era uma alma feita de violentos contrastes, ora de energúmeno, ora atrabiliário, ora cheia de “doçura angélica”. Suas aventuras foram sempre, no fundo, traquinadas ou molecagens. Parece que não deixou de ser criança. Não falam os seus cronistas de eventos amorosos na sua vida agitada e inquieta, em que as paixões políticas do momento predominavam. Contudo, sabe-se que foi pai de quatro crianças, (dois meninos e duas meninas), de diferentes genitoras, abandonando-lhes, deixou para que as mães desamparadas e o mundo os criassem ao seu inteiro talante.

Em 1848, de novo no Ceará, redige o “Juiz do Povo”, panfleto à maneira do “Pére Duchêne”, de Herbert, na Revolução Francesa, mal escrito e atrevido, que atacava tudo e todos em prosa e verso. Bastante eclético e verborrágico redigiu os pasquins: O Monitor; O Diabinho, O Torpedo; O Condor e A Onda, todos de péssimo gosto, pululados de obscenidades e linguagem vulgar que enlameava inclusive, a boa fama dos seus pares clericais.

Vigário de Soure, atual Caucaia, ali lhe imputaram crimes de morte. Preso em Pacatuba por escrever libelos anônimos, foi mandado sob escolta para Fortaleza. No caminho, convenceu aos soldados que o deveriam amarrar para não fugir. Assim o fizeram e, ao entrar na cidade, o povo, vendo um sacerdote ajoujado e lacrimoso, encheu-se de indignação, atacou os guardas e o libertou.

Deputado provincial nas legislaturas de 1848 e 1868, apesar dos 20 anos que as separam, em ambas nada mais fez senão pilhérias, travessuras e meter os colegas em ridículo. De Fortaleza saia para farras nas vilas próximas – Maranguape, Pacatuba e Baturité, onde sempre se embriagava e pintava o sete. Irrequieto e andejo, acabou mudando-se para o Aracati, de onde regressou moribundo à capital da província, embarcando num pequeno veleiro. Morreu, pouco depois de desembarcado, na Santa Casa de Misericórdia, segurando nas mãos hirtas, um pacote com 400 mil réis, pelos quais vendera um velho escravo que o servia.

Fora na verdade uma Canoa Doida, levada aos trambolhos pelo rio da vida. Vedeixa é ma figura curiosíssima do nosso passado a desafiar um profundo estudo psicológico.Em termos de bibliografia historiadores cearenses como Gustavo Barroso e Leonardo Mota dele se ocuparam em trabalhos como “À Margem”, “Da História do Ceará” e “Onde Quando Nasceu o Padre Verdeixa”

Clovis Ferreira da Cruz Ribeiro de Campos Lobo

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