Analfabetos e Prostitutas do Início do Século XX: Uma Visão Iluminista e Eugênica
Todos estavam cantando e acompanhando a letra da música através do livrinho na igreja lotada de fiéis. Alguns estavam sem o livrinho, mas uma moça solícita entregava um exemplar a todos. Lurdes também recebeu um. De início, ela pensou em não aceitá-lo mas concluiu que seria descoberta facilmente se assim procedesse e recebeu o livrinho já aberto na página da música que todos cantavam.
Ela olhou para a página e começou a reconhecer algumas letras que lhe eram familiares. Estas apareciam arrumadas e colocadas em diferentes posições. Via o “a” em todos os lugares. Reconheceu o “L”, a primeira letra do seu nome. Enquanto esse reconhecimento prosseguia, sua atenção estava voltada também, em verificar se as pessoas viravam a página para que ela repetisse o mesmo gesto. Mas seu medo aumentava e, de repente, uma fantasia começou a surgir em sua mente na qual ela era olhada pelos outros com pavor e censura, em que cochichavam e riam dela. Ela fingia ler e tinha medo de que os outros descobrissem sua mentira. Sua angústia era tanta que ela não agüentou mais. Ela fechou o livro e, demonstrando mal estar, colocou a mão sobre os olhos enquanto falava para sua vizinha concentrada na leitura, “meus olhos estão doendo. Acho que preciso trocar os óculos”.
Este depoimento foi colhido por mim em uma entrevista realizada em setembro de 2002, em que me chamou atenção o relato cheio de emoção, medo, vergonha e culpa pela condição de analfabeto.
A experiência acima relatada ou situações semelhantes são vividas por muitos adultos iletrados. Todos têm histórias de medo, mentira e sofrimento escondidos. É uma experiência comum porém solitária, e vão sendo repetidas indefinidamente no cotidiano dos adultos que não sabem ler e escrever. Como entender o medo e o sentimento de vergonha presentes na experiência de Lurdes? Somente recuando no tempo é possível compreender a razão da existência desses sentimentos em relatos de pessoas que não tiveram a oportunidade de estabelecer contato íntimo com as letras.
Procurarei rastrear dois caminhos: o discurso iluminista presente no seio da intelectualidade brasileira que advogava a escolarização como elemento de progresso e de regeneração do povo brasileiro, e as teorias biológicas ou organicistas, que procuravam demonstrar os traços degenerativos deste mesmo povo brasileiro os quais, traziam por herança uma raça supostamente atrasada e inferior. Esse dilema pareceu estar presente nos discursos das elites brasileiras, tendo sido claramente percebido e introjetado pelos grupos de analfabetos.
No período já referido, havia a mentalidade disseminada no meio da elite intelectual brasileira de que o analfabetismo presente em uma parcela significativa dos brasileiros interferia na unidade da jovem nação brasileira. Assim, sob a influência do iluminismo europeu, o discurso em defesa da escolarização tinha como objetivo apresentar a formação de um Estado brasileiro forte e progressista. Nesse sentido, a escolarização seria o meio através da qual seria formado o sentimento nacional, promovendo a instrução e o domínio da língua nacional. Somente então, alcançar-se-ia a “sociedade dos letrados” no dizer dos iluministas, segundo Boto (1). Esta autora afirma ainda, que para os iluministas a ignorância “seria ceifada pela via da Escola e esta, far-se-ia capaz de imprimir na alma dos novos cidadãos o registro da sociabilidade inédita que recriaria os costumes, os hábitos, os valores e a própria tradição” (p.99).
Portanto, a instrução seria o caminho que regeneraria o homem. O aprendizado contribuiria para o “o derramamento de luzes” e aperfeiçoaria a nação. Essa alta valorização dada à Razão contribuiu para que os grupos não escolarizados fossem discriminados, pois só a instrução poderia quebrar a desigualdade.
Entretanto, o discurso das elites e intelectuais brasileiras, que acreditavam na instrução como regeneradora e que corrigiria desvios, foi se contrapondo, até certo ponto, com as teorias biológicas, defendidas por alguns cientistas e estudiosos, tanto no Brasil como na Europa, as quais baseavam-se na crença em uma possível explicação de degeneração racial dos iletrados.
Assim, segundo Ana Maria Freire (2), existe uma ideologia da inferioridade dos analfabetos, que ela constatou através da leitura de documentos oficiais do início do século XX, nos quais o analfabetismo foi descrito por termos como: “peste negra”, “câncer”, “vergonha”, “degenerescência”, “chaga”, “proscrição moral”, “parias”, “ignorância”, “incompetência”. Não havia nesses documentos uma análise social e econômica mais profunda sobre o fenômeno do analfabetismo. Porém, os argumentos utilizados sempre de conteúdo excludente e marginal. Essa ideologia foi trazida pelo colonizador (europeu) detentor da leitura escrita que desprezou toda a cultura e educação baseada na narrativa oral aqui existente.A cultura européia civilizada, passou a servir de modelo de “ordenamento cultural” , como disse Cavalcante (3), tendo como conseqüência o fato de que os nativos foram perdendo a capacidade da memória pelo relato oral. A perda de importância da educação baseada na oralidade contribuiu para que aqueles iletrados (nativos índios, escravos africanos, mulheres, pobres em geral) fossem considerados inferiores ou incapazes.
Na verdade, muitas crenças ainda permanecem no cotidiano das pessoas de todos os graus de instrução, em que se acredita se a ausência do domínio da leitura e da escrita uma deficiência ou incapacidade de causa orgânica ou cerebral. Alexander e Selesnick (4) ao escreverem o livro “História da Psiquiatria”, fizeram um levantamento exaustivo das principais proposições médicas, nos séculos XIX e XX, que reforçavam a explicação orgânica dos comportamentos desviantes, demonstradas através de pesquisas cientificas em que “comportamentos degenerados” tinham uma explicação em falhas no sistema nervoso central, o que levava a doenças mentais. “Degenerações são desvios do tipo humano normal, que são transmissíveis pela hereditariedade e se deterioram progressivamente no sentido da extinção”. (Alexander e Selesnick, p. 220).
Essa linguagem científica, descrita acima, era bastante conhecida e utilizada pelos intelectuais cearenses desse mesmo período, pois tinham contato permanente com os estudos científicos mais modernos, seja através de constantes viagens feitas aos países europeus, ou através do acesso direto aos livros científicos que vinham de outros países. Aos estudos científicos deste período procuraram explicar os comportamentos humanos, os desviantes e os saudáveis como estando relacionados com a fisiologia e morfologia do corpo. Hall e Lindsey (5), psicólogos americanos, citam várias pesquisas realizada na Europa desde meados do século XIX, as quais explicavam certos traços de personalidade como atributos inatos e raciais, e que podiam ser identificados pela fisionomia, pela forma, estatura e musculatura do corpo. Um dos principais trabalhos foi desenvolvido pelo psiquiatra alemão Krestschmer em 1921, em que os diversos tipos de caráter e doenças mentais eram determinados por três tipos físicos humanos (atlético; delgados e magros e os de formas arredondadas). Mas, foram os estudos de Francis Galton, responsável pelo nascimento da eugenia de 1883, que deram início aos estudos sobre capacidades inatas de cada raça, os quais demonstravam com reconhecida consistência para época, que os indivíduos de raça branca eram os mais superiores, pois eram “civilizados”, mais inteligentes, com mais iniciativa e mais capazes, já que criaram um sistema de vida mais desenvolvido. Testes psicométricos e educacionais procuraram avaliar diferenças individuais de escolares e eram largamente utilizados para confirmar a inferioridade dos grupos raciais menos dotados ou que tiveram menores oportunidades educacionais. Após feito leitura das publicações deste período nas áreas de psicologia educacional e psicologia da aprendizagem, foi possível observar que o estudo eram as diferenças raciais hereditariamente determinadas causadoras ou de males e desvios, por um lado, ou de vitalidade e “ajustamentos” por outro. Assim, Cavalcante, Op.cit. , menciona no seu livro uma matéria publicada no jornal Diário de Ceará de oito de maio de 1922, em que o analfabetismo é descrito como “o maior mal que apresenta a nossa raça e o progresso do país”(p.106). Jucá (6) também enfatiza essa linguagem comentando a mentalidade dos educadores da época que descreviam menores pobres como aqueles que possuíam uma hereditariedade que predisporia à debilidade da vontade, indecisão e inconstância.
A idéia de uma raça débil e com desvios, sujeita a degeneração e extinção após algumas gerações, atormentava a elite intelectual cearense e brasileira de modo geral, inconformadas com o grande contingente de analfabetos e desnutrido (que geralmente eram negros ou mestiços) frutos da pobreza e desigualdades econômicas, mas que a mentalidade intelectual os via como portadores de traços de uma raça incapaz, intrinsecamente sem responsabilidade moral e, por isso mesmo, inadequadamente preparada para as atividades da vida adulta. Nesse sentido, o analfabetismo sempre foi visto como causa do atraso econômico do Brasil e da “degeneração racial” que causaria a extinção da nação brasileira em algumas gerações.
O estudo do médico brasileiro Nina Rodrigues (7), do mesmo período, em concordância com visão científica da época, vieram reforçar ainda essa mentalidade a qual acreditava ser questão de profilaxia e de higiene social promover a extinção dos negros e dos mestiços, pois a eles eram atribuídos traços como “inércia”, “indolência”, desânimo”, “subserviência” e, as vezes, “morfologia e fisiologia que não se iguala ao branco, com pobre capacidade de abstração”. Assim, afirma Nina Rodrigues sobre tal inferioridade racial:
A raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que cercou o revoltante abuso da escravidão há de se constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo. (p.07)
Ele afirma mais sobre a suposta decadência latina que sempre foi “de bom tom ostentar desprezo por esses inferiores, cortejando humildemente os fortes teutões e anglo-saxões” (ibdem, p.5) Nesse sentido, é possível concordar com Sérgio Buarque de Holanda (8) quando afirmou que o Brasil se envergonhava de si mesmo, de sua realidade biológica.
Movimentos como o da Liga Brasileira de Alfabetização, que surgiu em 1905, conforme menciona Ana Maria Freire, (Op.cit), tinham como objetivo “erradicar o cancro” do analfabetismo a fim de impedir a degeneração da nação brasileira. Tais movimentos partiam da elite intelectual brasileira, o que explica não ter logrado êxito pois, acredito que tais elites preferissem não promover os conhecidos membros degenerados da nação brasileira, o que causaria sua extinção em poucas gerações, e assim haveria o predomínio dos brancos que já dominavam a letras e o saber científico, sendo vistos como “o povo mais culto”.Segundo Nina Rodrigues, tal situação já estava acontecendo nos estados do sul do Brasil, onde ele acreditava que os negros de lá desapareceriam
Em algumas gerações em função de seu atraso e fraqueza física e psíquica, pois não havia cruzamentos com os brancos para surgirem mestiços, os quais só retardariam tão desejada extinção.
Talvez outro evento que muito contribuiu para a exclusão social dos analfabetos tenha sido a associação com grande incidência de sífilis e todos os problemas sociais causados por esta doença. Vejamos como se deu essa relação. Segundo Alexander e Selesnick (op.cit, a sífilis foi a doença que mais inspirou psiquiatras organicistas do século XIX e início do século XX. Embora essa doença seja registrada desde Hipócrates, foi uma epidemia ocorrida no século XV, que se alastrou por toda Europa e Ásia, que a tornou popular e temida. Somente 500 anos depois, por volta de 1905, foi descoberto o agente infeccioso, cujo controle só acontece a partir de 1944, com a descoberta da penicilina. Entretanto, mesmo antes já era sabido que a transmissão da sífilis se fazia pelo contato sexual com prostitutas. Holmes (9) afirmou que os primeiros estudos laboratoriais feitos no início do século XX procuravam demonstrar que a maior incidência de portadores de sífilis eram as pessoas de raça negra, o que vinha reforçar a concepção de fraqueza racial desta. Anos mais tarde, foi possível identificar erros nas pesquisas, as quais eram realizadas em clínicas públicas, cuja clientela era composta preferencialmente por negros pobres. No entanto, sífilis era considerada como hereditária, atingindo até a sétima geração da vítima doente, o que causava degeneração racial e sua conseqüente extinção. Na realidade, os verdadeiros causadores da suposta fraqueza racial eram a pobreza, o desprezo social e a própria doença em si.
No Brasil, a sífilis também se alastrou descontroladamente até a introdução da penicilina, a partir de 1940, como forma de tratamento eficaz. De acordo com Carrara (10), havia, no início do século, a mentalidade de que as prostitutas eram as portadoras de degenerações hereditárias, já evidenciadas através do seu comportamento sexual considerado desviante, as quais causavam os males nos homens. Tal mentalidade fundamentou a elaboração de políticas saneadoras, que designaram zonas de meretrício para as residências das prostitutas e hospícios ou casas de internação específicas, quando apresentavam a doença exposta em partes do corpo, chamada cancro.Além disso, eram cadastradas junto aos postos policiais. O Objetivo era impedir que a doença degenerativa se espalhasse pelas casas de boa família.
Portanto, assim como as feridas na pele chamadas de cancro eram a parte visível da sífilis, a qual levava a uma degeneração biológica da suposta raça brasileira, o analfabetismo correspondia ao “cancro social” ou a “peste negra”, na linguagem dos estudiosos da época, que levava também a degeneração da nação brasileira ou à sua inferioridade. Não por simples coincidência, tais males eram encontrados na população excluída de pobres, prostitutas e afros-descendentes, os quais eram avaliados pelas teorias científicas como os culpados pelo alastramento dos desvios e debilidades nacionais.Não eram considerados fatores socioeconômicos como ausência de assepsia, de assistência médica, de nutrição e de instrução satisfatória. Quando os cientistas, educadores, intelectuais e as elites no poder se referiam ao analfabetismo, em documentos oficiais, livros e jornais, como “um mal”, “uma doença”, “uma vergonha”, “um cancro” que se deve “extirpar”, estavam demonstrando uma mentalidade excludente e estigmatizante em relação aos menos afortunados vistos atavicamente inferiores, embora mascarada por um discurso de modernidade, cientificidade e preocupados com todos os grupos sociais. As políticas de alfabetização surgidas no Brasil de então, procuravam cumprir com uma certa obrigação moral de criar mecanismos que levassem os analfabetos às escolas, restando a estes a responsabilidade por sua alfabetização. Quem não conseguisse, passava a ser culpado pela vergonha nacional, sendo desvalorizado e inferiorizado, com rótulo de incapaz evidenciado pelo uso do polegar em documentos oficiais ou pela perda do direito de exercer o voto democrático. Tal situação ainda hoje persiste, haja vista a experiência vivida por Lurdes, a qual foi relatada no início deste artigo.
Na verdade, por trás do discurso de preocupação com a questão do analfabetismo, o uso de termos depreciativos, já citados, indicam a crença nas teorias organicistas de inerente fraqueza racial daqueles que não aprenderam a ler e escrever. É muito estranho que, já em pleno século XXI, as elites ainda usem termos como “erradicar”, “extirpar”, e outros similares, quando se referem à questão do analfabetismo. É estranho porque a teoria da eugenia, que defendia a idéias da transmissão hereditária de traços biológicos e psicológicos que indicavam atraso, debilidade e doenças da raça, já não possui sustentação na Ciência, tendo sido suplantada por pesquisas realizadas nos campos da Antropologia Cultural, da Psicologia Social e da moderna genética a partir da segunda metade do século XX. Entretanto, concordo com Lévi-Strauss (11) quando afirma que ainda permanece presente no cotidiano e no imaginário uma atitude psicológica de rejeitar formas culturais diversas que não se harmonizam com a cultura dominante, considerada “mais evoluídas” com a qual se identificam as elites. Somente dessa forma se pode entender porque tais denominações e classificações ainda existem.
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- BOTO, Cartola – A Escola do Homem Novo: entre o iluminismo e a Revolução francesa, São Paulo, Unesp, 1996.
- FREIRE, Ana Maria – Analfabetismo no Brasil – São Paulo, Cortez, 1993.
- CAVALCANTE, Juraci – João Hippolyto de Azevedo Sá: O Espírito da Reforma de 1922 no Ceará – Fortaleza, EUFC, 2000.
- ALEXANDER,Franz e SELESNICK – História da Psiquiatria. São Paulo, Ibraza, 1980.
- HALL e Lindsey – Teorias da Personalidade – São Paulo, EPU, 1973.LAVATER – Essays on psysiognomy: for the promotion of the knowledge and lhe love of Mankind – Londres. 1804; VIOLA, Le legge di correlazione morfologica dei tippi individuoli, pádua, Itália, 1909; SIGAUD, La forme humaine, paus, 1914; KRESTSCHMER – Körperbau und e Charakter, Berlim, 1921; GALTON – Hereditary Genius – Londres, 1869.
- JUCÁ, Gisafran – Verso e Reverso do perfil urbano de Fortaleza(1945/1960) – São Paulo: Annablume, Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará.
- RODRIGUES, Nina – “Os Africanos no Brasil” – São Paulo, Cia, Editora Nacional, 1977.
- HOLANDA, Sérgio Buarque – Raízes do Brasil, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1973.
- HOLMES, King – in HARRISON – Medicina Interna.Guanabara Koogan. Rio de Janeiro, 1983.
- CARRARA, Sérgio – Tributo a Vênus: A Luta Contra a Sífilis no Brasil da passagem do século XIX aos 40. Rio de Janeiro Fiocruz, 1997.
- LÉVI – Strauus, Claude – Raça e História in – COMAS, Juan et alli- Raça e Ciência I São Paulo, Perspectiva 1970.