Resenha do livro: O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil
Neste importante estudo, Davis Gueiros Vieira, PhD em História da América pela American University (Washington, DC) e professor aposentado da Universidade de Brasília, registra de forma esclarecedora a participação dos protestantes na chamada Questão Religiosa, resumidamente entendida como conflito entre católicos ultramontanos e a maçonaria na segunda metade do século XIX. Partindo de 1850, o autor apresenta os antecedentes dos fatos que, sem dúvida alguma, foi o mais duro conflito entre a Igreja e o Estado do século XIX. A presente obra foi fruto de dez anos de pesquisa para a tese de doutorado defendida em 1973 (p.11), destacando-se pelo forte caráter empírico. A apresentação da obra é feita por ninguém menos que Gilberto Freyre que, em 1978 afirma:
Sob essa perspectiva estaria ocorrendo uma cientifização do estudo histórico: isto é, do seu método ou dos seus métodos. Dos modos de pesquisa. Dos de ordenação e apresentação do material reunido. Mas sem que essa relativa cientifização de métodos venha importando no repúdio ao estudo histórico como literatura ou como arte. (p.8)
Baseando-se em documentos como os dos Anais da Câmara e do Senado, do Arquivo Nacional, da Biblioteca Nacional, do National Archives (Washington) e do Archivio Segreto Vaticano (Roma), além de outros arquivos de instituições religiosas no Brasil e no exterior, David G. Vieira nos mostra como a Igreja Católica estava em uma situação precária no período da Questão Religiosa. Politicamente enfraquecida pelo “uso e abuso do direito do padroado”, economicamente dependente de “côngruas mesquinhas” e com um clero “envolvido em política” e sendo acusado de “violador do celibato” (p.27), a Igreja teve que enfrentar a ameaça de invasão protestante, a maçonaria e o Estado. A priori Vieira apresenta duas hipóteses para a Questão Religiosa. A primeira, baseada na tese de Dom Antônio de Macedo Costa e do Arcebispo da Bahia, Dom Manuel Joaquim da Silveira, é a de que “grupos religiosos americanos… formavam a vanguarda treinada e consciente do imperialismo americano” com interesses na Amazônia (p.11); a segunda “presumia ter havido uma conspiração liberal, de âmbito universal, para destruir a Igreja Católica romana e que a maçonaria fora utilizada como arma para este fim” (p.11). David G. Vieira investiga e descarta tais hipóteses. Para ele a Questão Religiosa foi provocada por vários fatores, entre eles a luta pelos direito de culto dos não católicos e a defesa de seus direitos civis, além da consolidação do liberalismo.
O autor dedica grande parte da obra ao estudo dos vários grupos protestante estabelecidos no Brasil no século XIX. Considerados uma “espécie de enigma” pelo fato de serem heterogêneos, dividiam-se em: luteranos, anglicanos, metodistas, congregacionais e presbiterianos. Com ideologias diferentes, esses grupos, por serem minoritários, uniram-se entre si e também com outros grupos não católicos em defesa do direito de culto no Brasil.
Dividida em quatorze capítulos, a obra tem pelo menos cinco dedicados aos principais missionários protestantes e sua ação no Brasil. Nos capítulos três e quatro o autor nos apresenta uma considerável biografia de James Cooley Fletcher, americano, protestante e “expositor das Sagradas Escrituras” (p.81) que fez muitas amizades importantes no Império, inclusive com D Pedro II. A idéia de progresso, tão cara à maioria dos intelectuais do período, era frequentemente associada ao protestantismo, por isso Fletcher está sempre ligado aos maçons e liberais conhecidos como “amigos do progresso” (p.83). Além de Fletcher, o autor dedica o capítulo seis ao congregacional Robert Reid Kalley. Conhecido como “médico herético calvinista que estava ‘pervertendo’ o povo de Madeira”, Kelley foi perseguido pela “horda do populacho… encabeçada pelo Governador” da Ilha e saiu de lá disfarçado de “uma senhora idosa e doente” (p.114), vindo depois para o Brasil, onde também foi duramente perseguido. Os capítulos oito e nove são dedicados ao escocês Richard Holden, ministro episcopal que agiu no Pará e na Bahia publicando textos bíblicos e sermões em jornais. Uma reação interessante às publicações de Holden foi a elaborada pelo Bispo do Pará, Dom Antônio Macedo Costa, que em 1861 fez circular uma Pastoral “anti-protestante” advertindo seus vigários contra o “monstro da heresia” e suas “falsas bíblias” (p.182). Mais tarde o missionário destacou em seu diário que o bispo considerou que ele “[Holden] estava perdendo tempo em Belém, pois que o povo do Pará não pensava. “Nem mesmo seus clérigos pensavam e ele estava perplexo sem saber o que fazer com eles”, assim registrou o escocês.” (p.185)
Tavares Bastos, deputado liberal, amigo de Fletcher e considerado o “apóstolo do progresso” (p.95) também recebe atenção especial no capítulo cinco. O autor nos apresenta vários sub – capítulos onde trata de personagens que foram importantes para a maçonaria, o protestantismo e a defesa do catolicismo ultramontano, essas pequenas biografias certamente causam bastante incômodo para quem não pretende se aprofundar no tema, em função de constituírem-se interrupções à narrativa. Porém são fundamentais para entender principalmente o protestantismo, tema ainda hoje pouco explorado pela historiografia.
Vieira nos mostra como a dita Questão Religiosa foi bastante mais ampla do que a falta de entendimento entre os bispos de Olinda e Pará e a maçonaria, o autor apresenta o tema como o confronto entre o liberalismo e o ultramontanismo no Brasil. Dentro deste quadro, os liberais e maçons foram vistos pelos ultramontanos como aqueles que pretendiam “protestantizar” o Brasil (p.373). Para influenciar a imigração, os liberais colocaram em questão temas irredutíveis para o catolicismo como o casamento civil e a liberdade de culto, imprescindíveis para o favorecimento da vinda daqueles considerados como “a raça mais apropriada para nós [brasileiros]… laboriosa, empreendedora, e perseverante” (p.234).
Tratando majoritariamente da inserção dos protestantes no Brasil e seus principais expoentes, a presente obra tornou-se um marco para o estudo do protestantismo brasileiro do século XIX. Dificilmente encontraremos trabalhos sobre esse período e tema (ainda que sejam pouco estudados pela historiografia atual) em que esta obra não conste na bibliografia. Com exceção das obras oficiais das igrejas protestantes apresentadas, O Protestantismo a maçonaria e a questão religiosa no Brasil é uma das poucas, senão a única que nos apresenta esse grupo que tanto cresce em nosso país, de uma maneira empírica e resultante de pesquisas sérias. Analisando os trabalhos publicados sobre o tema e a importância dada à obra de David Gueiros pode-se destacar O celeste porvir de A.G Mendonça, além das inúmeras teses e dissertações, a exemplo da tese de doutorado da Professora Elizete da Silva na Universidade de São Paulo em 1998 que trata dos anglicanos e batistas na Bahia.[1] Por fim, décadas depois de sua publicação, a obra de Vieira continua sendo um importante marco para o estudo do protestantismo. Apesar do título do livro ser muito mais abrangente, pode-se afirmar que poderia se resumir a um título que enfatizasse a inserção protestante em nosso país. Por esse motivo, tal obra se constitui como leitura indispensável àqueles que pretendem aprofundar-se no tema.
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[1]Antônio Gouvêa Mendonça. O Celeste Porvir: a inserção do protestantismo no Brasil. 3. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. 376pp. e Elizete da Silva. Cidadãos de outra pátria: anglicanos e batistas na Bahia (Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, 1998). 427pp