Histórias de Vida: Memórias de Uma Rua
A Presente publicação sobre a qual me debruço para resenhá-la despertou meu interesse por ser o resultado de uma exaustiva e competente pesquisa, de relevante interesse para a historiografia contemporânea, para a cidade de Fortaleza e para os estudiosos em geral.
O estudo apresentado faz uma profunda reflexão sobre a rua e a memória. É um trabalho acadêmico, em a pretensão de sê-lo. Apresenta o rigor da escrita, mas é leve, envolvente, como a narrativa de um literato, que mostra o ato de sonhar na rebeldia dos seus personagens e na descrição suave de seu objeto.
Trata-se de um estudo interdisciplinar, em que o olhar atento do pesquisador experiente liga as fontes e os registros orais a um diálogo com a historiografia. Dando visibilidade a homens e mulheres anônimos na multiplicidade da vida, na construção dos espaços e nas diversas temporalidades, valoriza as reminiscências nas marcas que a história deixou ao longo do seu processo.
Nas últimas décadas, o interesse de historiadores, antropólogos, arquitetos, cientistas políticos, semioticistas e comunicólogos tem-se acentuado e vem, com freqüência, sendo discutido em produções e eventos científicos, onde a relação entre cidade e memória, cidade e história, cidade e arquitetura, cidade e imprensa, aparece nos mais variados temas e abordagens científicas. A cidade é um palco de representações, cenário cultural de signos que a expressam e onde vamos buscar a lógica histórica com as diferentes categorias de manifestações de linguagens, que formam as variadas máscaras da cidade e denominam os seus territórios, com tão bem nos elucida Lucrecia Ferrara em suas substanciosa obra(b).
A cidade se constitui num turbilhão de signos e significados que se alteram, se cruzam e se isolam com os rastros deixados pela sucessão de épocas.
Já Fernande Braude(c) escreveu que as cidades são transformadores elétricos que aumentam as tensões e agitam incessantemente a vida humana. Assim sendo, entendemos que a história de uma cidade não é somente uma contribuição ao conhecimento do passado, que vai aumentar o patrimônio das lembranças históricas, mas permite também considerar o presente numa perspectiva correta e ajuda a projetar melhor, com maior consciência e responsabilidade, o futuro do consciente urbano.
Composta de ruas, bairros, praias e avenidas, é um conjunto de manifestações traduzidas nas relações que as pessoas estabelecem entre si, nas expressões culturais, no progresso, nas multidões, no flâneur, no voyeur, nas verticalizações desiguais e arrojadas, nos jardins, nas flores, nos bares, nas cantinas, nos boulevards e nos aspectos negativos, como a pobreza, a miséria, as enchentes, o trânsito e a violência.
Os diversos elementos que compõem a existência comum dos homens inscrevem-se em um espaço no qual deixam as suas marcas. Lugar onde se manifesta a vida, o espaço é condição, meio e produto da realização da sociedade humana em toda sua multiplicidade(d). Espaço e tempo se articulam de modo indissociável, como prática sócioespacial. Cada lugar tem a sua especificidade no cruzamento de temporalidades diferenciadas. É na trama do tecido social que se constroem as vivências do passado, que se revigoram na memória do presente.
Mudanças e transformações ocorreram no espaço físico apresentado. Temporalidades se ajustaram, personagens desapareceram, costumes se alteraram, paisagens se deformaram, mas o olhar atendo do pesquisador está focado para registrar estas alterações da paisagem física e humana. A memória flagra o ontem como uma película que agrada ao público.
Um longo sumário apresenta a estrutura da obra, dividida não em capítulos rigorosamente acadêmicos, mas citados sem nenhum rigor científico. É como se o poeta-literato desafiasse o acadêmico, na segurança teórica do seu conhecimento. Essa sutileza é aparente, porque o rigor se esboça nas entrelinhas e no conjunto da obra.
Introdução, tempo, espaça, memória e fragmentos da memória são separados e não agrupados em um único compartimento, que podia ser chamado de forma mais apropriada de considerações iniciais.
Seguem títulos e subtítulos sugestivos, lindo e apropriados ao que o autor descreve nas partes subseqüentes do livro.
O universo da Rua Carapinima era, como o descreve tão bem o narrador, o binômio colocado em Roberto da Mata(e), ou seja, a casa, seus valores familiares e a rua como o espaço da autonomia, da liberdade e das molecagens infantis, que hoje são vistas com a cor suave da inocência.
O mundo da Rua Carapinima é a vida da comunidade, dos amigos, vizinhos, conhecidos, da rua, do bairro e da cidade, onde a urbe se alonga e atinge a zona rural, que se confunde com os jardins e os pomares verdes que enfeitam toda a “família”, que se une a irmandade da rua.
Na escapa ao espírito indagativo e ilustre do autor. O trem e o percurso da paisagem, o jardim da cada da professorinha, que se mostra lindo, com rosas de variadas matizes, são descritos com a mesma singeleza como os afazeres domésticos, a cozinha e o trabalho da mulher dentro do lar e fora dele, à frente do comércio.
Recuperando imagens e personagens, lidando de forma simples, mas substanciosa, em um prazeroso e competente passeio pelos lugares da memória da rua da sua infância, Paulo Aragão nos remete a Walter Benjamin, quando o filósofo alemão também revisita a sua Berlim de 1900(f) . Nesta obra, como na de Benjamin, é o adulto que relembra a infância e constrói o universo das emoções, dos prazeres, do amor, da amizade e dos mais sinceros sentimentos reconstruídos nessas reminiscências. A bicicleta Monark, símbolo de status social na década de 50, e o orgulho do menino de roupa cáqui a caminho do Liceu são descritos com tanta sensibilidade e originalidade que o leitor se encontra e se remete às suas diversas temporalidades. Os brinquedos construídos artesanalmente, as brincadeiras de roda, de bonecas, de esconde-esconde, de bolas, de botões, que entretinham meninos e meninas nas brincadeiras de rua, imitando seus ídolos do cinema hollywoodiano, estão inseridos na obra de forma leve e agradável.
Estabelecer a relação entre cidade, bairro, rua e memória foi o que faltou, com maior ênfase, ao livro aqui resenhado. Os lugares da memória foram sendo percorridos, e os rastros, muito bem delineados, foram identificando os personagens e as imagens de forma poética e substanciosa. ” A Memória, como fenômeno individual e psicológico, liga-se também à vida social”(g) . Sendo a memória a propriedade de conservar certas informações, reenvia-nos, sempre em primeiro lugar, para um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas(h).
A diversidade da memória se constitui também em um campo minado pelo luta política e pelos conflitos sociais, que constituem o próprio objeto da história. “Memória é um significado sempre aberto, com um conjunto de estratégias, uma presença, que vale menos por aquilo que é, do que aquilo que dela se faz”(i). O autor soube muito bem estabelecer na sua obra o que dela se faz e como se faz.
Para o brasileiro, casa e rua não designam espaços simplesmente geográficos, mas são acima de tudo, entidades morais e esferas de ação social, como nos lembra Roberto da Matta(j). Paulo Maria de Aragão nos presenteia com uma belíssima descrição dos diferenciais da “sua” rua. A Rua Carapinima é descrita no seu espaço geográfico de forma inteligente nas suas relações sociais e de parentesco, mas, historicamente, faltou-nos o significado do nome da rua. Fotografias expressivas ilustram o conjunto da obra, dando-lhe identidade.
O público acadêmico e não-acadêmico vai se deliciar com a obra, também com o que se refere aos estudos da memória, da história, do público e do privado, da cidade e da rua.
Parabenizo o autor pela obra arrojada, que tenho certeza, vai entrar para o rol de títulos essenciais para a historiografia comtemporânea, objetivando especificamente a rua na cidade de Fortaleza, e vai enriquecer as produções científicas dos diferentes ramos do conhecimento e somar-se a elas. É uma valiosa contribuição.
Fonte: Revista Jurídica – Ano II – Nº. 07 – 2007 Leis&Letras páginas 52 e 53
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NOTAS
(b) – Ferrara, Lucrecia D’Aléssio – O Olhar Periférico, São Paulo, EDUSP, 1999.
(c) – Braudel, Fernando – A Dinâmica do Capitalismo, tradução de Carlos da Veiga Ferreira, Lisboa, Editorial Teorema, 1989.
(d) – Carlos, Ana Fani Alessandri – Espaço-Tempo na Metrópole: A Fragmentação na Vida Cotidiana, São Paulo, Contexto, 2001.
(e) – Da Matta, Roberto – A Casa & A Rua. Espaço, Cidadania, Mulher e Morte no Brasil, 5ª. ed., Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1997.
(f) – Benjamin, Walter – Infância em Berlim, por Vota de 1900, in Obras Escolhidas Vol. II, Rua de Mão Única, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1987.
(g) – Nora, Pierre – Les Lieux de Memoire (Apresentação), Vol. I, La Republique, Paris, Gallmard, 1984.
(h) – Le Goff, Jacques – Momória e História, in Enciclopédia Einardi, Lisboa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1984, pg. 50.
(i) – Op. Cit., pg. 11.
(j) – Da Mata, Op. Cit.